Revisão: Adê Moura
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Conexão e pertencimento
São Paulo, 28 de junho de 2025.
Durante o mês do orgulho LGBTQIAP+, falar sobre o impacto cultural do K-pop entre pessoas queer é mais do que necessário. Especialmente porque, para muitas delas, ser fã de K-pop não é somente gostar de música pop coreana. É encontrar um espaço simbólico onde a existência se torna possível, acolhida e até celebrada mesmo que silenciosamente.
Em um cenário global onde o preconceito ainda limita oportunidades e visibilidade, a música representa para parte da comunidade LGBTQIAP+ uma linguagem de libertação emocional, afetiva e identitária. Isso acontece por vários motivos.
Primeiro, pela estética fluida que rompe padrões de gênero. Em muitos grupos, homens usam maquiagem, roupas consideradas “femininas”, dançam com gestos sensíveis e se relacionam entre si de maneira afetuosa no palco e fora dele. Essa expressividade não necessariamente tem um caráter político na indústria, mas acaba ganhando significado simbólico para quem assiste de fora e se sente, pela primeira vez, representado ou pelo menos não invisibilizado.
Entre acolhimento e descoberta: quando o K-pop se torna refúgio
Convidamos alguns fãs do gênero para contarem suas experiências com o K-pop enquanto pessoas queer. Para fins de confidencialidade, os nomes mencionados são fictícios, mas as respostas não foram alteradas e o resultado dessa conversa vocês podem conferir a seguir.
Para fãs LGBTQIAP+, esse impacto é direto na construção de identidade, as pessoas ouvidas para esta matéria relataram que o K-pop foi um dos primeiros espaços culturais onde se sentiram mais livres para experimentar, refletir e se reconhecer.
Manuela, conta que o K-pop foi um grande apoio no processo de se entender na comunidade. Ela destaca como músicas que falam sobre amor-próprio e pertencimento, como “Answer: Love Myself”, do BTS, tiveram um impacto real na sua trajetória. Segundo ela, a arte e as mensagens ajudaram em momentos em que se sentia isolada, sem referências positivas ao seu redor.
Carlos, compartilha que o K-pop esteve presente em uma fase muito importante do seu autoconhecimento. Para ele, ouvir “Move”, do Taemin, foi um divisor de águas. A interpretação, a fluidez nos movimentos e a quebra das barreiras de gênero foram fundamentais para que entendesse que não precisava se encaixar em padrões impostos pela sociedade.
Para Juliana, músicas como “Lalalay”, da Sunmi, e a estética da artista se tornaram elementos de libertação. Segundo ela, acompanhar artistas que transitam entre o pop e o experimental, com visuais mais ousados, foi essencial para se enxergar fora de uma lógica cisnormativa.
Fandoms como rede de apoio, mas não isentos de desafios
O segundo ponto levantado por 80% das pessoas ouvidas é que, embora os fandoms de K-pop possam ser espaços de acolhimento, eles também refletem as contradições da sociedade.
Muitos afirmam ter encontrado nos fandoms uma verdadeira comunidade, especialmente nas redes sociais. Para Marta, os espaços na rede social X, antigo Twitter foram fundamentais. Ela relata que encontrou amizades com outras pessoas queer, com quem pôde conversar sobre descobertas, desafios e até compartilhar o amor pelos mesmos grupos, sem medo de julgamento.
Por outro lado, há quem aponte que esse acolhimento não é uniforme. Jorge menciona que já presenciou episódios de bifobia, machismo e até racismo dentro dos fandoms, especialmente em contextos de brigas entre fãs ou discussões mais acaloradas nas redes. Isso deixa claro que, apesar dos espaços serem, em muitos casos, acolhedores, ainda há muito a ser feito em termos de conscientização, empatia e respeito nas próprias comunidades.
Entre os entrevistados, Eliana, faz um alerta: “O fandom pode ser extremamente acolhedor, mas, ao mesmo tempo, quando se trata de discussões sérias sobre identidade de gênero ou orientação sexual, alguns ainda reproduzem discursos conservadores”.
Entre amor e resistência: as contradições da indústria
Na Coreia do Sul, embora a vivência LGBTQIAP+ enfrente restrições legais e sociais mais severas, há resistência acontecendo. Jovens fãs queer coreanos se organizam em fóruns, em páginas anônimas no Instagram e em movimentos artísticos independentes. O Seoul Queer Culture Festival, realizado anualmente, é um símbolo dessa luta. E, nos últimos anos, já contou com presença de fãs carregando bandeiras com nomes de grupos de K-pop e frases de apoio mútuo.
Mas é impossível ignorar que a própria indústria do K-pop mantém um distanciamento formal da pauta LGBTQIAP+. A maioria dos idols não pode se assumir publicamente, seja por medo de represálias das empresas, de contratos publicitários ou da reação de fãs mais conservadores, tanto no país quanto fora dele. A sexualidade segue sendo um tabu, mesmo que apresentações explorem a ambiguidade e a estética queer.
O impacto da coragem de artistas como Holland, que se assumiu publicamente ainda em 2018 e enfrentou censura, boicote e isolamento na indústria, não pode ser subestimado. Seu posicionamento abriu caminho, simbólica e concretamente, para outros artistas poderem trilhar percursos semelhantes.
Nos últimos anos, essa mudança ficou evidente com nomes como Bain, integrante do grupo JUST B, que compartilhou abertamente sua orientação esse ano, tornando-se o primeiro idol de boy group ativo na Coreia do Sul a fazer isso de forma pública. O mesmo vale para Lara e Megan, integrantes do grupo global KATSEYE, que se assumiram como membros da comunidade queer.
K-pop como espaço de reconstrução
A tensão entre o que a indústria permite e o que os fãs projetam não é simples. Ainda assim, o K-pop segue sendo, para muitas pessoas queer, um território de criação, pertencimento e expressão. É onde elas podem reinventar como são vistas, como se veem e como se conectam com o mundo.
Ao olhar para as respostas dos fãs, fica evidente que o K-pop não é só entretenimento. É uma janela, muitas vezes a única, para enxergar possibilidades de existir sem vergonha, sem medo e com amor-próprio. E mesmo que não tenha surgido como um movimento político, se torna, na prática, um espaço de resistência afetiva.