Entrevista: Carol Tomé
Design: Vicky Barros
São Paulo, 24 de dezembro de 2024.
Monge Han é artista, quadrinista e ilustrador amarelo-brasileiro descendente de coreanos. “Daruma”: Perseverança” ele apresenta figuras da cultura leste-asiática e discorre sobre temas como laços familiares, luto e racismo. O quadrinho foi lançado em novembro de 2024, pela Editora Pitaya.
O autor conversou com a HIT! sobre seu lançamento mais recente e seu processo criativo, leia a entrevista completa:
Time HIT!: Pode nos falar um pouco sobre você e seu trabalho?
Monge Han: Quando eu estava mais ou menos com uns dois anos postando tirinhas, comecei também a falar um pouco sobre a minha identidade racial e como sou visto pela sociedade, as origens da minha família, que é uma família coreana, porque também é um processo de eu mesmo entender a minha infância. A onda hallyu não era muito forte, eu não tinha nenhuma noção do que era ser coreano e que eu era tratado como uma pessoa diferente.
Time HIT!: “Daruma” é seu maior quadrinho até o momento, pode nos contar de onde surgiu a inspiração para tal?
Monge Han: A primeira vez que desenhei a Yumi com a máscara de daruma foi em 2018. Na época, eu estava criando desenhos que achava interessantes para flash de tatuagem. Eu trabalhava como tatuador e sempre fui fascinado pela figura do daruma, que minha mãe adora. Tínhamos darumas em casa, então essa imagem sempre foi marcante para mim.
Em 2019 ou 2020, enquanto trabalhava em “Halmoni”, comecei a esboçar os primeiros personagens de “Daruma” , como Yumi, Yangui e outros. Naquele momento, minha intenção era criar um quadrinho com protagonistas brasileiros de origens diversas e uma história de aventura. Yumi seria uma personagem de descendência japonesa, e Yangui, chinesa. Foi quando a HarperCollins entrou em contato comigo durante a CCXP de 2022, perguntando sobre possíveis histórias mais longas, “Daruma”: Perseverança” foi publicado pelo selo jovem adulto da editora, o Pitaya.
Este foi o primeiro quadrinho do selo, e isso traz uma grande responsabilidade. Quero muito que “Daruma” seja um sucesso, não só para mim, mas para fortalecer os quadrinhos brasileiros. A publicação por uma grande editora é um sinal de que investir nisso vale a pena.
Tenho o sonho de convencer as pessoas de que os quadrinhos brasileiros merecem tanto consumo quanto os internacionais. “Daruma” é um projeto grandioso, com mais de 200 páginas, mas muitas coisas precisaram ser cortadas. Ainda tenho vontade de expandir a história, apresentando mais personagens e aprofundando os já existentes. Não há nada confirmado sobre uma continuação, mas existe essa possibilidade.
Time HIT!: A protagonista, Yumi Santos Gushiken, parece ser uma mulher forte e decidida. Que outras características podemos esperar dela?
Monge Han: A Yumi tem muito da minha relação com minha mãe. Só percebi isso com mais clareza após ver a história pronta. Quando comecei a desenvolver a Yumi, não percebia tanto, mas hoje vejo que ela reflete muitas qualidades que admiro na minha mãe.
Fui criado por ela, uma mãe solo, com o apoio da família. Não tenho irmãos, então sempre fomos só nós dois. Meu pai saiu de casa quando eu tinha nove anos, então vi minha mãe trabalhar e lutar sozinha para cuidar de tudo. Isso é algo que se reflete na realidade de muitos brasileiros.
Queria que ela carregasse essa força que vi na minha mãe, mas sem romantizar. A história de Yumi a coloca como uma figura que pensa nos outros antes de si mesma, especialmente nos irmãos mais novos, aos quais ela cuida com 24 anos.
Ela tem um coração enorme e um forte senso moral, mas também é impetuosa, não gosta de desaforo e costuma falar sem pensar. Isso é algo que admiro em muitos personagens, como o Luffy de One Piece, que age antes de pensar e se torna cativante justamente por isso.
Além disso, percebi que essa característica dela se opõe ao estereótipo das mulheres japonesas, que na mídia são geralmente retratadas como delicadas, misteriosas ou passivas. Quis mostrar uma personagem com um grande coração, mas também forte, explosiva e nada passiva. A Yumi não engole desaforos e age sem pensar. Esse aspecto também é inspirado na minha mãe, que é calma à primeira vista, mas tem um lado muito bravo.
Time HIT!: Por que escolheu o mito de “Daruma” como elemento fantástico da história?
Monge Han: Acho que foi uma escolha meio intuitiva. Sempre gostei da ideia de fazer um pedido, algo ritualístico e pessoal, com o qual me identifico bastante. O daruma tem origem budista sendo baseado em um monge. Cresci no budismo, então há uma identificação profunda com essa figura. Minha mãe e eu sempre tivemos uma ligação especial com o daruma em casa, o que também reforçou essa escolha.
O que mais me atrai é a questão da determinação. Com o “Daruma” , você faz um pedido, pinta um dos olhos e ele “ajuda”, mas não no sentido de manipular o mundo espiritual. O foco está em alimentar sua própria determinação, mantendo o objetivo sempre visível, para não perder o foco. Esse aspecto filosófico me chamou muito a atenção, além do simbolismo dos olhos que se completam.
Visualmente, achei interessante a ideia de uma menina usando uma máscara de “Daruma” . Geralmente, essa figura é associada a homens, com barbas e um aspecto robusto. Mas ao escolher uma mulher, isso trouxe um contraste visual interessante.
Time HIT!: Como você se enxerga na vivência dos personagens e na narrativa?
Monge Han: O mais interessante para mim em “Daruma” é que esta é minha primeira história ficcional publicada. Até agora, sempre estive mais focado em narrativas autobiográficas ou biográficas, exigindo um mergulho profundo na pessoa que estamos contando a história. Como minha mãe é coreana e eu não sou de origem japonesa, consultei muitos amigos japoneses ou descendentes para garantir que a representação cultural fosse a mais fiel e respeitosa possível.
Tenho a preocupação de fazer os personagens parecerem pessoas reais, e como uma pessoa amarela, noto quando uma representação cultural é superficial. Não quero apenas explorar vivências pessoais, mas também mostrar que os problemas que enfrentamos não são únicos, sendo questões universais que qualquer brasileiro pode se identificar.
Um dos meus objetivos foi mostrar que, como brasileiros, as pessoas amarelas enfrentam as mesmas dificuldades de qualquer outro, apesar de, muitas vezes, sermos vistos como “de fora”. Isso é algo que muitos brasileiros de origem asiática enfrentam, sendo tratados como estrangeiros mesmo após gerações aqui. Quero quebrar esse preconceito e mostrar que personagens amarelos também são brasileiros, e isso pode ser identificado por qualquer leitor, independentemente da etnia.
Além disso, a identidade vai muito além das origens asiáticas. Somos latino-brasileiros, e nossa experiência não se limita aos estereótipos.
Time HIT!: Durante a mesa de “Amarelitudes: Histórias e Experiências de Autores Asiáticos Brasileiros” na Bienal do Livro 2024, você comentou sobre o impacto da onda Hallyu no Brasil. Como isso se aplica à literatura?
Monge Han: A cultura coreana se tornou muito popular, especialmente em termos de comida. Algo que sempre esteve presente em minha casa, como o kimchi, hoje é considerado “cool“. Isso foi um grande choque de realidade para mim, pois, antes da onda Hallyu, a comida coreana era vista como algo exótico.
O K-pop também cresceu muito, mas não foi algo que acompanhei muito. Contudo, o fenômeno da comida foi algo que me impressionou. Isso é um exemplo claro de soft power, em que questões culturais se espalham por outras áreas, como alimentação, por exemplo.
A literatura coreana também está ganhando mais atenção, e isso é ótimo. No entanto, há uma diferença entre apreciar e fetichizar a cultura. Percebo que, no Brasil, há uma tendência de projetar uma imagem idealizada da Coreia, algo que ocorre especialmente entre os jovens. As diferenças culturais são sutis, mas profundas, e isso me faz refletir sobre como essas influências externas interagem com a nossa realidade.
Time HIT: Qual foi a parte mais difícil na construção do quadrinho?
Monge Han: O processo de criação foi repleto de desafios e exigiu uma dedicação extrema, algo que é uma constante na minha vida. A história inicial não se encaixava no formato que eu queria, então precisei dividir o enredo em partes menores, focando na origem da personagem e nos seus aspectos fundamentais. Isso ajudou a enriquecer o quadrinho, permitindo um aprofundamento que teria sido perdido se eu tivesse apressado o processo.
Para me concentrar exclusivamente no projeto, tive que abdicar de outros trabalhos freelance e investir meu dinheiro. Mesmo com o trabalho intenso, amo o que faço e isso me motivou a continuar. Passei meses com uma rotina de mais de dez horas por dia, o que até me causou uma pequena lesão no cotovelo. Mas adaptei minha forma de trabalhar para evitar mais problemas. O maior desafio foi garantir que a narrativa fosse fluida e envolvente.
Em “Daruma”, consegui alcançar isso, já que os leitores conseguem ler várias páginas sem parar, o que para mim foi a maior confirmação de que o objetivo foi cumprido. Agora, o desafio é divulgar a obra e ver como o público reagirá.
Time HIT: “Daruma” traz elementos da cultura leste-asiática e aborda temas como laços familiares, luto e racismo. Pode falar mais sobre a escolha desses temas?
Monge Han: “Vozes Amarelas” foi uma história que eu já tinha em mente, mas sempre procuro aprofundar as questões. Com “Criança Amarela“, comecei a abordar o tema da racialidade amarela, e em “Halmoni“, falei sobre ancestralidade. Em “Vozes Amarelas“, explorei esses temas por diferentes ângulos.
Agora, em “Daruma”, pude expandir essas questões para além da minha própria origem. O que faço é compartilhar experiências reais e representar pessoas e situações que raramente vemos, especialmente no Brasil, onde as pessoas amarelas são muitas, mas ainda não se veem na mídia.
A editora percebeu a importância do meu trabalho sobre identidade racial, algo que não é comum, e isso é algo que quero reforçar: mesmo sendo brasileiros há várias gerações, nós, amarelos, ainda não somos devidamente representados. Essa obra não é biográfica, mas traz um personagem com muitas semelhanças comigo. A protagonista é uma mulher amarela e seu melhor amigo é um gay descendente de chineses, algo raramente visto, apesar de haver tantas pessoas amarelas e gays no Brasil.
Em “Daruma” , a escolha de ter protagonistas e antagonistas amarelos foi para destacar nossa identidade e discutir as questões que enfrentamos, além de questionar a comunidade amarela, que muitas vezes não contribui para o avanço social. Quero tratar das questões raciais de maneira profunda e não apenas de uma forma simplista ou voltada apenas para o sofrimento, mas também sobre as responsabilidades que essa identidade traz.
Time HIT: Uma das suas inspirações para “Daruma”: Perseverança” é “Scott Pilgrim”, do Bryan Lee O’Malley. Podemos esperar bastante humor na obra?
Monge Han: O humor é algo que surge naturalmente nos meus quadrinhos, especialmente nas interações entre os personagens. Em “Daruma” , isso aparece no começo, mas a história vai se aprofundando em questões mais sérias antes de retornar ao humor e à ação.
Isso me permite explorar várias emoções, transitando do humor para o drama, suspense e até terror, o que me mantém motivado como autor. Essa mistura de gêneros é algo que me empolga, ao oferecer a chance de explorar diferentes aspectos da narrativa.
Time HIT: Quem é o seu personagem favorito?
Monge Han: É difícil escolher um favorito, mas se tivesse que escolher, diria a Yumi. Eu a desenvolvi de forma mais aprofundada, o que me deu mais intimidade com ela. Ela tem muitas características que admiro em outras personagens, como a força que vejo em mulheres importantes da minha vida, como minha mãe.
Yumi também tem uma personalidade complexa, sendo tanto irritada quanto boazinha e sensível, o que a torna ainda mais interessante. Espero que o público se sinta da mesma forma por ela.
Time HIT: Como você enxerga seu crescimento pessoal e profissional desde “Vozes Amarelas” até a publicação de “Daruma”?
Monge Han: “Daruma” é uma combinação de tudo o que fiz até agora. Sempre busco algo novo, e isso envolve mudanças no meu estilo de desenho. Eu queria criar uma linguagem de quadrinhos bem brasileira, com influências de mangá, algo que é possível perceber em “Daruma” , mas que ainda tem uma identidade própria.
Quero que as pessoas percebam que é um quadrinho brasileiro, não um mangá. Embora muitos tentem fazer “mangás brasileiros”, eu quero fortalecer a identidade do quadrinho brasileiro, sem querer copiar algo feito no Japão.
Essa abordagem pode gerar resistência no início, mas acredito que o público vai entender com o tempo, especialmente ao ler “Daruma” . Acredito que o potencial desse projeto é grande e a obra só vai crescer mais.
Time HIT: Tem algum recado que você gostaria de mandar aos leitores da HIT?
Monge Han: Acho muito bacana que o público da HIT! curta a cultura asiática, especialmente a coreana, mas gostaria de pedir para que também considerem apoiar criadores e autores brasileiros amarelos. Temos muito a compartilhar e nossas histórias têm muito em comum com as de vocês.
Ser um criador amarelo no Brasil é mais difícil, por haver poucos parâmetros de comparação, mas temos uma realidade, histórias e experiências que se aproximam muito mais da sua do que as de um autor do leste asiático. Então, gostaria de pedir que deem uma chance aos autores amarelos e brasileiros, porque acredito que há muita coisa interessante a ser descoberta e muitas conexões a serem feitas.
Perguntas rápidas
Time HIT: Qual a comida que a Yumi menos gosta?
Monge Han: Azeitona preta.
Time HIT: Que música não pode faltar em uma playlist de “Daruma” ?
Monge Han: Só – Kamau.
Time HIT: Quem é o seu autor favorito?
Monge Han: Eichiro Oda.
Time HIT: Indique um quadrinho nacional para os HIT!Lovers.
Monge Han: “Do Contra“, de Yoshi. Ele é um autor amarelo brasileiro, e o quadrinho traz um personagem que também é amarelo e brasileiro. Cresci vendo personagens como ele e outros, como o Ken do Combo Ranger, que foram importantes para nossa representatividade. O “Do Contra” é uma ótima recomendação e merece ser lido.
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