Matérias, Sociedade

Não é só questão de gosto, é fetiche mesmo

Há algumas semanas um vídeo movimentou as redes sociais e trouxe diversas discussões sobre o consumo de conteúdo coreano.

Em um corte retirado do podcast #NaPalmaDaMari, do Canal CNN, e apresentado por Mari Palma, o criador de conteúdo, Arthur Paek, comenta sobre a existência de locais em São Paulo, em específico na região do Bom Retiro, onde mulheres e homens ocidentais vão à procura de homens asiáticos para se relacionar.

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Crush em idol ou fetiche em coreano? Sim, fetiche em pessoas coreanas é real e tem até nome: “yellow fever”. No NaPalmaDaMari, @arthurpaek falou sobre essa “febre” que pode ser bem bizarra. 👀 #MariPalma #ArthurPaek #Coreanos #KDrama #KPop #YellowFever

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A procura por um relacionamento com pessoas asiáticas, homens coreanos na maioria dos casos, tem se tornado cada vez mais comum e numa rápida olhada nos comentários do vídeo percebemos o quão complicada é a situação. 

São pessoas de diversas idades, em sua grande maioria mulheres, que usam as plataformas digitais para expor seus interesses não por uma pessoa em específico, mas por uma etnia racial. Essa busca por pessoas de origem e fenótipos asiáticos recebeu o nome de Yellow Fever (em português, febre amarela).

Yellow face

Mickey Rooney em cena de abertura do filme “Bonequinha de Luxo” (Reprodução/Paramount)

Vamos voltar um pouco no tempo e tentar entender como tudo isso começou.

Hollywood, terra das estrelas. A Era de Ouro do cinema estadunidense (1917 a meados de 1960) foi responsável por ditar grande parte do comportamento de toda uma geração e levar nomes importantes ao estrelato mundial.

Quem não se lembra da cena de abertura de “Bonequinha de Luxo” em que Audrey Hepburn para em frente à famosa joalheria enquanto toma seu café da manhã; ou de Judy Garland fugindo do furacão em “O Mágico de OZ”; isso sem falar de Marilyn Monroe e sua icônica atuação em “O Pecado Mora ao Lado”, responsável por eternizar o momento em que o vento levanta seu vestido branco. Todas estas cenas entraram para a história e são recriadas até hoje.

Mas o que isso tem a ver com o tema deste texto?

Quando analisados com mais afinco, percebemos que a maioria esmagadora dos filmes traz como protagonistas pessoas brancas. E, quando há representação de pessoas não-brancas, elas são exageradamente estereotipadas e estão sempre em posições de subserviência ou de antagonismo.

Voltemos a falar de “Bonequinha de Luxo”. A trama gira em torno de uma garota de programa chamada Holly Golightly, interpretada por Audrey Hepburn, que deseja se casar com um homem rico. A questão muda quando o jovem escritor Paul Varjak (George Peppard) se muda para o mesmo prédio em que ela vive. Ela fica dividida entre seu plano original e o sentimento que tem por Paul.

Tudo muito interessante e divertido exceto por um detalhe: Sr. Yunioshi.

O Sr. Yunioshi é um personagem japonês interpretado pelo ator branco Mickey Rooney. Na trama, ele é vizinho de Holly e está sempre presente como alívio cômico. Atrapalhado, com um forte sotaque e dentes protuberantes, o ator usou fita adesiva para marcar os olhos numa tentativa racista e exagerada de se assemelhar a um homem de origem leste-asiática.

Este não foi o único caso de Yellow Face no entanto. Quando não eram representados como bobalhões, os papéis que recebiam eram de vilões. Em “A Face de Fu Manchu” temos Christopher Lee, outro ator branco, no papel deste gênio do crime chinês. Outra representação que coloca personagens amarelos na categoria de persona non grata.

São inúmeros os casos, mas o importante aqui é perceber que há um certo padrão. Os homens asiáticos só eram relevantes quando precisavam de personagens caricatos e antagonistas. Estavam ali apenas para fim de entretenimento, nunca com camadas e de maneira alguma como interesse romântico.

O legado de Bruce Lee

Cena de Bruce Lee no filme “Dragão Chinês” (Reprodução/Warner Bros)

A cena muda um pouco com o aparecimento de Bruce Lee. O ator sino-americano ficou conhecido mundialmente por seus movimentos de artes marciais e pelo uso deles em filmes como “O Dragão Chinês”, “A Fúria do Dragão” e “O Voo do Dragão”, entre outros.

Bruce Lee virou ícone não apenas por ser protagonista, mas também por ir contra tudo o que Hollywood já havia colocado nas telas ao representar estes homens como emasculados, isto é, aquele que não possui virilidade. Ao contrário de antes, ele trazia consigo o nacionalismo chinês e isso levou toda uma população carente de representatividade a admirá-lo.

O ator faleceu cedo, com apenas 32 anos, e deixou um legado que até hoje é motivo de orgulho para a comunidade asiática.

Hollywood, no entanto, viu o quão lucrativo isso poderia ser e produziu exaustivamente filmes em que asiáticos são exímios lutadores, herdeiros de profecias ou ninjas. A existência de Bruce Lee moldou a maneira como a masculinidade asiática era vista, mas não o bastante para que não caíssem em mais um estereótipo.

Colocá-los nessa posição ainda não apagava toda a ideia que já havia sido construída antes. Eles eram fracos e indesejados ou especialistas em artes marciais. Basicamente não havia meio-termo.

K-pop, K-dramas e a busca pelos oppas

Byeon Woo-Seok e Kim Hye Yoon em “Lovely Runner” (Reprodução/Viki)

Dando um salto no tempo e chegando ao presente encontramos um mundo completamente diferente. A indústria do entretenimento coreano se espalhou pelos quatro cantos e tem ditado as tendências mundiais.

O grande destaque desse momento está em como as pessoas coreanas podem ser representadas, dando um leque de possibilidades para a forma como a população amarela ao redor do mundo se vê nas telas. Lazer, cultura, moda e gastronomia. Na era da tecnologia, todos os olhares estão voltados para a Coreia do Sul, inclusive em seu idioma.

No relatório divulgado em 2021 pelo Duolingo Language Report, o coreano ficou em segundo lugar como a língua que mais cresceu mundialmente no aplicativo Duolingo. Boa parte desse interesse pelo idioma tem sua origem no K-pop e nos dramas coreanos.

Enquanto algumas pessoas têm profunda admiração pelos costumes coreanos e, por isso, pesquisam a fundo o idioma, há outras que confundem ficção com realidade e buscam, na verdade, um relacionamento digno de uma série. E é aí que começam os problemas.

Lindos, carismáticos, pacientes e inteligentes. São inúmeros os personagens das séries coreanas que podemos enumerar com essas qualidades, mas o que muita gente não consegue entender é que eles são apenas personagens.

Muitas vezes motivadas pelo que veem representado nas séries, as pessoas criam essa fantasia de que se relacionar com um asiático, em especial os coreanos, significa o sucesso no amor.

Como se essa relação unilateral e parassocial com os personagens já não fosse preocupante o bastante, há ainda quem acredite que os atores possuem as mesmas características de quem estão interpretando. E é na impossibilidade de estar em contato direto com estes artistas que as pessoas projetam suas fantasias em quem está mais próximo. Surge então a fetichização em pessoas amarelas.

De acordo com o Dicionário Online, fetichização é a “ação de reduzir a fetiche, de transformar algo ou alguém num objeto erotizado ou usado para saciar os desejos de alguém”.

Em outras palavras, isso significa projetar as fantasias pessoais em alguém, neste caso num homem coreano. Há quem possa enxergar isso como uma vitória. Afinal, se antes estes homens eram ignorados, hoje eles são desejados. Mas por quê exatamente surge esse interesse?

Ainda que sejam vistos como interesse romântico, a maneira como algumas pessoas olham para estes homens parte de um lugar enviesado. Como dito no vídeo que abriu este texto, há pessoas ocidentais que vão onde há pessoas amarelas única e exclusivamente para se relacionar com eles. Não por quem são, nem por sua personalidade ou porque rolou um clima saudável entre ambos, mas porque eles às lembram de seus atores e idols favoritos.

Reduzir alguém aos traços étnicos é uma atitude irresponsável e cruel. É colocar essa pessoa novamente na posição de subserviência onde nada do que ela é importa. Isso sem contar o risco que algumas pessoas correm de se envolver com homens abusivos, cujos alertas são ignorados por conta do fetiche.

Homens são homens em qualquer lugar do mundo. E não é porque o seu ator favorito abriu a porta do carro para a protagonista do drama que todos os homens coreanos são assim.

Como você se sentiria se soubesse que a pessoa a quem tanto ama não lhe vê de forma especial e poderia te trocar a qualquer momento por alguém da sua etnia?

Não estou aqui para impedir que você, leitor, leitora ou leitore, namore uma pessoa amarela. Estou aqui apenas para lembrar a todos vocês que ninguém merece se relacionar com quem reduz toda a sua existência em um fetiche.

Fontes: (1), (2), (3), (4), (5), (6), (7), (8), (9)

(1) Comentário

  1. Como é necessário essa pauta ser debatida em contextos informativos e de entretenimento. O texto falou, exemplificou, alertou e praticamente desenhou a urgência do fim dessa “cultura” do fetiche.

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