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HIT!Politics: Uma análise sobre a Lei de Difamação na Coreia do Sul

Design por: Cintia Paz

Campina Grande, 30 de Março de 2025.

Memória, Poder e Lei: Uma análise sobre a Lei de Difamação na Coreia do Sul

Em um cenário marcado por controvérsias e debates acalorados, a recente polêmica envolvendo o ator Kim Soo-hyun e a falecida atriz Kim Sae-ron chama a atenção para questões profundas sobre memória, responsabilidade e justiça. Nos últimos meses, surgiram alegações que relacionam os atores a um passado delicado em comum, gerando uma onda de debates nas redes sociais e na imprensa. Essa situação, que poderia ser considerada um episódio isolado, revela, na verdade, uma complexa dinâmica de como a lei de difamação é aplicada – e, principalmente, a quem ela realmente protege.

Essa controvérsia levanta uma pergunta essencial: quais são as consequências de usar a legislação de difamação para moldar narrativas sobre figuras públicas e, agora, sobre a memória de alguém que já faleceu? Se, por um lado, as normas visam preservar a honra e a dignidade, por outro, elas podem ser utilizadas para silenciar críticas e distorcer fatos em benefício de determinados interesses. Em um país onde o debate público muitas vezes se traduz em processos criminais, é fundamental refletir sobre quem, de fato, se beneficia dessa proteção legal.

Na Coreia do Sul, as leis de difamação se destacam por sua rigidez e abrangência. Diferentemente de muitos países ocidentais, onde a difamação é tratada como uma questão de responsabilidade civil, a legislação sul-coreana permite que declarações – mesmo que verdadeiras – sejam punidas criminalmente se prejudicarem a reputação de alguém. Segundo o Seoul Law Group, qualquer palavra que cause dano à imagem de outra pessoa pode ser considerada ilegal. 

No Código Penal sul-coreano, o Artigo 307 estabelece penas para quem difama, diferenciando casos em que os fatos são verdadeiros dos casos em que são falsos, sendo estes últimos tratados de forma mais severa. Já o Artigo 308 define que a difamação contra pessoas falecidas será punida criminalmente somente quando os fatos divulgados forem falsos. Para a divulgação via meios impressos, o Artigo 309 prevê penalidades ainda mais duras, considerando a amplificação da mensagem. Por outro lado, o Artigo 310 dispõe que, se os fatos são verdadeiros e divulgados por interesse público, a ação pode ser justificada, embora essa exceção seja interpretada de forma restrita pelos tribunais.

O papel estratégico das leis

Para compreender a complexidade do uso das leis de difamação na Coreia do Sul, é essencial olhar para o setor do entretenimento, onde tais normas transcendem a proteção da reputação para se tornarem verdadeiros instrumentos de controle narrativo. Conforme apontado no artigo “K-Pop’s Secret Weapon: South Korea’s Criminal Defamation Laws” escrito por Rebecca Xu, Doutora em Jurisprudência pela Universidade de San Diego, a legislação não apenas ampara celebridades e figuras públicas, mas também é empregada para silenciar críticas e manter uma imagem cuidadosamente construída. 

Essa “arma secreta” atua para que qualquer relato – ainda que seja fundamentado em fatos reais – que possa abalar a imagem de um artista ou influenciar a opinião pública seja tratado com extrema rigidez, reforçando a ideia de que, na Coreia do Sul, a preservação da honra tem prioridade sobre a livre circulação de ideias.

Em diversas situações, as mesmas normas que visam proteger a reputação acabam sendo invocadas para evitar investigações e debates críticos. No contexto das celebridades, por exemplo, a utilização da lei de difamação tem permitido que casos de conduta questionável sejam minimizados ou silenciados, mantendo intacta uma narrativa oficial que favorece interesses pré-estabelecidos. Assim, a aplicação da lei revela uma tensão: enquanto se defende a integridade da imagem pública, simultaneamente se restringe o espaço para o debate aberto e a revelação de verdades que, embora desconfortáveis, são parte do discurso democrático.

Essa estrutura legal, que visa proteger a reputação, se torna ainda mais complexa quando aplicada a pessoas que já não estão entre nós. No caso de Kim Sae-ron, a disputa não é apenas sobre a veracidade dos fatos, mas sobre como a memória e a imagem de uma pessoa falecida podem ser manipuladas para favorecer ou prejudicar interesses de poder. A forma como as alegações são tratadas pela lei reflete, em última análise, uma luta entre o direito à honra e a necessidade de um debate público aberto e verdadeiro.

Ao se tratar de figuras que já não estão entre nós, a aplicação das leis de difamação assume uma dimensão que ultrapassa a simples proteção de reputações individuais. Essa prática levanta importantes questões sobre até que ponto o direito à honra pode justificar a limitação da liberdade de expressão e o acesso à informação, contribuindo para um ambiente em que a verdade é, muitas vezes, moldada pelo controle jurídico e midiático.

Análise no contexto político recente

Além do impacto no entretenimento, o estudo “Criminal Prosecutions for Defamation and Insult in South Korea”, publicado em 2017, por Kyung-Sin Park e Jong-Sung You,  lança luz sobre a instrumentalização das leis de difamação no ambiente político. Por meio de uma análise empírica dos casos de “difamação de candidatos” ocorridos entre 2005 e 2015, os autores demonstram como essas normas têm sido utilizadas para proteger os interesses dos detentores de poder e suprimir críticas. 

Em um momento de intensas transformações políticas, exemplificado pelo recente impeachment do presidente Yoon Suk-yeol, após a tentativa de impor lei marcial no país em 3 de dezembro de 2024, essa abordagem revela-se ainda mais relevante. O uso estratégico dessas leis não apenas afeta a reputação dos indivíduos, mas também reflete uma tentativa de controlar a narrativa política, moldando a memória coletiva e, consequentemente, a percepção pública dos eventos. Assim, a análise ressalta a necessidade de uma reflexão crítica sobre o papel dessas normas na manutenção – ou no enfraquecimento – dos pilares democráticos na Coreia do Sul.

A análise do uso das leis de difamação, tanto no ambiente político quanto no entretenimento, aponta para a necessidade urgente de repensar o modelo vigente. Enquanto países ocidentais optaram por tratar a difamação predominantemente no âmbito civil, a Coreia do Sul mantém um sistema que possibilita a punição criminal mesmo para declarações verídicas, desde que estas causem dano à reputação. Tal postura não só fragiliza o debate público como também abre espaço para abusos que podem ser dirigidos contra vozes dissidentes e narrativas alternativas – sejam elas sobre eventos históricos ou sobre a memória de indivíduos que já faleceram.

Em meio a esse cenário, a experiência do caso de Kim Sae-ron e as análises sobre o “segredo” do K-pop ilustram como a legislação pode ser empregada tanto para proteger quanto para silenciar. A construção de uma memória coletiva que respeite a verdade e a complexidade dos fatos depende de uma revisão crítica desses mecanismos legais. Somente assim será possível encontrar um equilíbrio que garanta a proteção da honra sem comprometer o direito fundamental à livre expressão e à investigação crítica.

Fontes: (1), (2), (3), (4), (5), (6), (7)

Sobre o autor

Estudante de Jornalismo pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), escrevo sobre geopolítica e outras coisinhas :)
Para sugestões de pauta: jjoanaelen@gmail.com

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