Revisão: Bia Martins
Design por: Cintia Paz
Campina Grande, 27 de Abril de 2025.
Em 1984, um voo comercial decolou de Seul com uma carga incomum: bebês sul-coreanos amarrados em cobertores, presos a assentos de avião como bagagens de mão. A foto, divulgada em 2025 pela Comissão da Verdade e Reconciliação, resume meio século de uma prática que envergonha a Coreia do Sul: a exportação em massa de crianças para adoção internacional. Entre as décadas de 1950 e 1990, mais de 170 mil crianças foram enviadas a países como Estados Unidos, Suécia e Dinamarca – muitos sequestrados de suas famílias, registrados como órfãos ou trocados como mercadorias em um mercado global de adoções.
A origem desse sistema remonta ao pós-Guerra da Coreia (1950-1953), quando o país, arrasado pela pobreza, encontrou nas adoções internacionais uma solução econômica perversa: terceirizar a proteção de crianças a agências privadas, que lucravam com doações de famílias estrangeiras. Sem fiscalização, empresas como a Holt Children’s Services falsificavam certidões de óbito de pais vivos, inventavam histórias de abandono e até substituíam bebês mortos por crianças saudáveis para cumprir metas mensais. “Eles me disseram que minha mãe não me queria mais. Só descobri a verdade 44 anos depois”, relatou Han Tae-soon, que reencontrou a mãe em 2019, após décadas de buscas.
Os números impressionam: em 1985, no auge do programa, 8.800 crianças foram enviadas ao exterior – o equivalente a 1,3% de todos os nascidos no país naquele ano. Para atender à demanda, as agências não pouparam crueldades. Kyung-ha, então com seis anos, foi abordada por uma mulher que a convenceu a seguir para um orfanato com a falsa promessa de reencontrar a mãe. Sete meses depois, estava em um avião rumo à Virgínia (EUA), onde cresceu acreditando ter sido abandonada. Casos como o dela não eram exceção: um relatório de 2025 confirmou que 56 entre 100 adoções analisadas foram marcadas por fraudes, coerção ou tráfico infantil.
O trauma, porém, não terminou no aeroporto. Muitos adotados enfrentaram abusos no exterior, como Inger-Tone Ueland Shin, sequestrada aos 13 anos por um casal norueguês que ignorou leis de adoção. “Cuidavam melhor do cachorro do que de mim”, desabafou ela, que processou o governo norueguês por negligência em 2022. Outros, como Adam Crapser, deportado aos 40 anos após viver ilegalmente nos Estados Unidos, tornaram-se apátridas – fantasmas sem pátria nem passado.
Enquanto histórias como a de Adam ganhavam repercussão, o cinema já sinalizava a dimensão coletiva do trauma. Em Retour à Séoul (2022), do diretor Davy Chou, inspirado na história real de Laure Badufle — adotada por uma família francesa aos 18 meses — a protagonista Freddie personifica a crise de identidade de milhares de vítimas. Em cenas cruciais, o filme questiona a falsificação de documentos (“Como podem me chamar de órfã se minha mãe ainda está viva?”) e a mercantilização de crianças, antecipando debates que a Comissão da Verdade só viria a oficializar em 2025.
A narrativa mostra como a protagonista, apesar de biologicamente coreana, se sente estrangeira em seu país natal, confrontando burocracias, expectativas familiares e a dificuldade de reconstruir vínculos apagados por um sistema de adoção negligente. A obra, premiada em Cannes, tornou-se um símbolo artístico das adoções como “bagagem humana” – e provou que o escândalo já respirava na cultura antes de explodir na política.
Em março de 2025, a Comissão da Verdade sul-coreana reconheceu oficialmente as violações e recomendou um pedido de desculpas do Estado. O problema, segundo ativistas, é que a reparação ainda não chegou: agências como a Holt continuam operando, pais biológicos morrem sem reencontrar os filhos, e a Coreia do Sul segue como o terceiro maior “exportador” de crianças do mundo. A nova lei de 2023, que transfere o controle das adoções para o Ministério do Bem Estar, é um avanço simbólico, mas insuficiente para quem carrega cicatrizes de uma infância roubada.
Como resumiu Lee Ji-min, adotada na França em 1987: “Enquanto o governo se desculpa, minha mãe biológica morre sem saber meu nome real”. Resta saber se as promessas de 2025 serão capazes de devolver o que décadas de negligência arrancaram: identidades, famílias e o direito básico de pertencer.
A Coreia do Sul parou de tratar crianças como bagagem. Porém, para milhares de vítimas, o voo de volta para casa ainda não decolou.