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Campina Grande, 17 de Julho de 2025.
O Jeheonjeol (제헌절), celebrado em 17 de julho, comemora a promulgação da primeira Constituição da República da Coreia em 1948. Muito além de um marco formal, essa data simboliza o nascimento de um Estado que buscava, em meio às ruínas da Segunda Guerra e da ocupação japonesa, afirmar sua própria autoridade democrática. A escolha de um texto constitucional inspirado em modelos ocidentais (com Executivo forte, Legislativo bicameral e garantias formais de direitos) foi um passo decisivo para a afirmação da soberania popular numa península recém dividida.
No entanto, o verdadeiro significado dessa data não se resume ao ato jurídico: ela inaugura um percurso de profundas tensões entre o poder concentrado e a voz do povo. Desde as fraudes e repressões da Primeira República até o rompimento do sistema autoritário em 1987, cada encruzilhada da política sul-coreana reflete o embate entre quem detém o controle do Estado e quem reivindica participação ativa. É nesse espaço de conflito e resistência que o Jeheonjeol reconquista sua força como convite permanente à cidadania.
Transições de regime
- Primeira República (1948–1960): Apesar dos princípios democráticos, o governo de Syngman Rhee endureceu o regime alegando ameaça comunista, restringiu liberdades civis e fraudou eleições, o que levou à “Revolução de 19 Abril” em 1960, tendo a morte de um estudante durante uma manifestação em Masan como estopim para uma onda de protestos em todo o país, que resultou na renúncia de Rhee em 26 de abril de 1960.
- Segunda República (1960–1961): Após a renúncia de Rhee, o Ministro das Relações Exteriores Ho Chong assumiu um governo provisório, com o objetivo de restaurar a ordem, organizar eleições e responsabilizar oficiais do antigo regime. Em 15 de junho, a Assembleia Nacional promulgou uma nova Constituição que aboliu o presidencialismo, instaurou um sistema parlamentar bicameral e transferiu o poder executivo real para o primeiro-ministro. Nas eleições de julho, o Partido Democrático conquistou ampla maioria, elegendo um governo focado em ampliar liberdades políticas, remover antigos agentes repressivos e restaurar a imprensa independente.
- Golpe de 1961 e Regime Yushin (1961–1979): O breve suspiro de democracia não durou muito, pois foi em 16 de maio de 1961 que o general Park Chung-hee liderou um golpe militar que depôs o governo civil da Segunda República, justificando a intervenção pela necessidade de “restaurar a ordem” e conter a crescente instabilidade política do país. No início de seu regime, Park manteve formalmente a Constituição de 1948, mas controlava de perto o Legislativo e reprimiu partidos de oposição. Em 1963, foi eleito presidente em um pleito conturbado, iniciando um ciclo de mandatos que buscava “modernizar” o país a todo custo. Em outubro de 1972, Park Chung-hee sancionou a “유신헌법” (Constituição Yushin) substituindo integralmente a carta de 1948 e instituindo um regime autoritário disfarçado em estrutura legal. Entre os principais pontos estavam a extensão do mandato presidencial de quatro para seis anos sem limite de reeleições, a atribuição ao presidente de poderes para dissolver o Legislativo e decretar estado de emergência sem revisão judicial, e a criação de um colégio eleitoral controlado pelo Executivo responsável por “eleger” o presidente. Esse período foi marcado pelo cerceamento severo das liberdades civis e intensificação da censura à imprensa.
- Massacre de Gwangju (1980): Até 1979, diversas greves operárias e protestos estudantis foram duramente reprimidos, alimentando um acúmulo de tensões sociais. Pouco depois do assassinato de Park em outubro de 1979, o general Chun Doo-whan liderou um segundo golpe em dezembro, declarando lei marcial em todo o país. Em maio de 1980, em meio à imposição de lei marcial pelo regime de Chun, estudantes, trabalhadores e moradores de Gwangju ergueram-se contra a suspensão de liberdades civis; as tropas enviadas pela liderança militar reagiram com força letal, atirando contra civis desarmados e deixando entre 200 e 600 mortos, segundo diferentes levantamentos. O governo censurou reportagens, prendeu correspondentes locais e divulgou versões que retratavam os manifestantes como “comunistas infiltrados”. Foram formadas redes de solidariedade compostas por familiares de vítimas e ativistas de direitos humanos que documentavam depoimentos orais e recolhiam evidências para desmentir a versão oficial do governo.
- Democracia restaurada (1987-1988): Em junho de 1987, uma onda massiva de protestos varreu a Coreia do Sul, desencadeada pela morte sob tortura do estudante universitário Park Jong-chul e pelo anúncio de que o ditador Chun Doo-whan manteria o sistema de eleição indireta para presidente. Estudantes lideraram manifestações em Seul e em outras grandes cidades, unindo trabalhadores, profissionais liberais e até setores conservadores da sociedade. Ao longo de duas semanas, mais de um milhão de pessoas foram às ruas exigindo eleições diretas e o fim da lei marcial. A amplitude do movimento pressionou o regime a anunciar, em 29 de junho, a “Declaração de 29 de Junho”, em que Chun se comprometeu a rever a Constituição e permitir eleições diretas . Esse acordo, referendado em outubro de 1987, introduziu emendas cruciais: eleições presidenciais em dois turnos, mandatos de cinco anos sem reeleição, fortalecimento do Legislativo e garantias ampliadas de direitos civis. A vitória popular foi em 16 de dezembro de 1987, quando Roh Tae-woo venceu as primeiras eleições diretas, selou o fim do autoritarismo e inaugurou a Sexta República, consolidando para sempre no texto constitucional os freios e contrapesos que impediriam o retorno de regimes militares no país.
A vitória da democracia na Coreia do Sul não foi um acordo definido de cima para baixo, mas o resultado de uma sociedade que se recusou a permanecer em silêncio. Estudantes, operários, mulheres e moradores de diversos cantos do país, seguidos por milhões nas ruas em 1987, mostraram que a mobilização política coletiva é o motor essencial para estender e proteger direitos. Mais do que lembrar datas e decretos, celebrar o Jeheonjeol é reconhecer o poder transformador do ativismo popular; é afirmar que a Constituição só ganha vida plena quando cada cidadão assume seu papel de guardião da democracia.

