São Paulo, 26 de setembro de 2024.
R. F. Kuang é uma das melhores autoras da contemporaneidade. Suas obras são repletas de fantasia, mistério e boas pitadas de críticas ao mundo em que vivemos. Característica essa que se estende para além dos livros.
Eleita uma das estrelas em ascensão pela lista TIME 100 Next, Rebecca mostra o lado vil e cruel da indústria editorial, um mundo que prega tanto pela liberdade de pensamento e de ideias ao mesmo tempo em que esmaga a diversidade e o pouco conquistado por pessoas não-brancas.
Sinopse
Athena Liu é perfeita! Escritora de sucesso, suas obras são disputadas por editores, publicadas em inúmeros países e adaptadas para diversas séries e filmes. Todos ao seu redor parecem idolatrar ela, exceto, talvez, por sua amiga de faculdade, June Hayward. Ao contrário de Athena, ela é um completo fracasso editorial e nutre inveja pelas conquistas da amiga.
Em uma noite de comemorações, June presencia a morte de Athena em um estranho incidente. Ainda que chocada com a situação, a garota não titubeia e rouba o mais recente livro escrito pela amiga — uma obra sobre a presença de trabalhadores chineses durante a Primeira Guerra Mundial.
June entende a importância e a magnitude do manuscrito que tem em mãos e decide publicá-lo sob seu nome. O livro é um sucesso editorial e garante uma boa retomada na carreira da escritora, agora conhecida como Juniper Song.
Entretanto, a escalada ao sucesso não parece ser algo tão simples assim. Ao mesmo tempo em que seu nome permeia a lista dos mais vendidos, fãs de Athena passam a se questionar sobre as similaridades entre as escritoras. Será que uma mulher branca como June é de fato capaz de escrever com tamanha riqueza de detalhes um livro sobre a China?
June se vê como peça central em discussões sobre plágio, identidade racial e supremacia branca. Até onde ela será capaz de ir para manter seus segredos?
Repleto de críticas ao mercado editorial e ao esvaziamento de pautas raciais, “Impostora: yellowface” é o mais recente livro de R. F. Kuang publicado no Brasil.
Biografia
Antes de falar sobre o livro é preciso conhecer a pessoa por trás da obra.
Rebecca F. Kuang nasceu na China e imigrou aos Estados Unidos com a família aos quatro anos. Crescendo no Texas, ela estudou no colégio Greenhill School e, após se formar, foi para a Universidade de Georgetown, onde se graduou em história.
Aos 19 anos ela começou a escrever o primeiro volume de “A Guerra da Papoula”, livro que veio a ser publicado pouco antes de seu aniversário de 22 anos.
Com o lançamento, seu nome passou a figurar nas listas de mais vendidos e o romance de estreia lhe rendeu indicações aos prêmios Nebula e Locus, ambos especializados em livros de ficção científica e fantasia.
Alguém capaz de tal façanha chamou a atenção do mercado — ainda mais sendo tão jovem. E foi com “A Guerra da Papoula” que Rebecca figurou na lista de 100 melhores livros de fantasia de todos os tempos, ao lado de nomes como J. R. R. Tolkien e C. S. Lewis.
Tão jovem e tão promissora, muitos poderiam considerar este sucesso como sorte de principiante. Algo que a autora, inclusive, abordou em um texto na TIME.
“Na noite anterior ao meu aniversário de 20 anos, eu chorei porque não seria mais uma adolescente. […] A coisa mais generosa que minha indústria fez por mim foi me deixar crescer. Aos 27 anos, eu deixei de ser qualificada para a categoria de escritora prodígio (ainda bem), e não há como falar sobre o alívio que é minha juventude não sobrepor mais o meu trabalho. Uma benção deixar de ser boa para minha idade e possivelmente ser apenas boa. Acho que meu trabalho como escritora era horrível aos 19 anos e espero que daqui a 10 anos eu vá achar vergonhoso tudo aquilo que publico agora.”
Um ano antes desta declaração, Rebecca foi finalista e vencedora do prêmio Nebula de melhor romance com o livro “Babel ou a necessidade de violência”.
Hoje a escritora coleciona indicações a prêmios e diplomas universitários. Além de ser mestre em Filosofia em Estudos Chineses, por Cambridge, e em Estudos Contemporâneos Chineses, por Oxford, Kuang é doutora em Línguas e Literaturas do Leste Asiático pela Universidade de Yale.
Opinião
Vendo como a carreira de Kuang foi sendo construída, é impossível ler este livro sem pensar que ele carrega pedaços de sua própria história.
Com tanto conhecimento teórico e de causa, “Impostora: yellowface” reúne tudo o que Rebecca viveu nestes últimos anos no mercado editorial e pela internet.
O livro é narrado inteiramente pela visão de June Hayward, uma mulher branca e melhor amiga de Athena Liu, uma mulher sino-estadunidense. Ambas são escritoras, mas só Athena alcança o sucesso.
June acredita que isso esteja relacionado ao fato de que o mundo não esteja mais tão receptivo às obras escritas por mulheres brancas, ainda que, em suas palavras, o sucesso da amiga seja apenas um reflexo por ela ser “uma queridinha” da indústria editorial. Alguém escolhida pelo mercado para receber a atenção e os louros de todos aqueles que se dizem acolhedores e receptivos à diversidade.
Ao longo de toda a história nos deparamos com June tentando vender a ideia de que, mesmo roubando e publicando o manuscrito de Athena, ela é sim a autora da obra. O debate acerca disso tudo é: seria uma mulher branca capaz de escrever sobre os trabalhadores chineses com tamanha riqueza de detalhes?
Sobre o assunto, Rebecca já disse em entrevistas o que pensa. Segundo ela, em entrevista ao The Guardian, “[…] o ponto de uma narrativa é, dentre outras coisas, se imaginar fora de sua experiência de vida e ser empático com as outras pessoas e escrever verdadeiramente, e com compaixão, toda uma gama de personagens. Do contrário, tudo o que poderíamos publicar seriam memórias e autobiografias, e ninguém quer isso”.
Ainda de acordo com a autora, neste momento, a pergunta não deveria ser sobre quem pode escrever, mas como essas histórias estão sendo escritas.
“As pessoas estão sendo críticas aos estereótipos presentes no gênero? Ou só estão replicando eles? Qual a relação dessas pessoas com aqueles que estão sendo representados? Este trabalho faz algo interessante? É bom?”, questiona Rebecca.
São perguntas como estas que colocam June na berlinda em diversos momentos da história. E apesar de ficção, este livro está repleto de cenas que podemos associar às que vemos acontecendo diariamente, como os cancelamentos e linchamentos virtuais e a busca por uma superioridade em relação às outras pessoas.
Ainda que possam ser consideradas opiniões polêmicas, o fato de vermos uma mulher tão ciente e segura de si abordando tais assuntos mostra como, talvez, estejamos enxergando o problema de maneira errada.
O livro em si não mostra só como o roubo do manuscrito e a tentativa de assumir uma identidade que não lhe condiz são errados. Ele fala sobre como algumas pessoas se sentem na posição de tomar para si as coisas que não lhe pertencem e como a sociedade corrobora isso.
Ademais, quando questionada, June encarna a faceta “quem me conhece, sabe”, tão presente nos momentos de crise de pessoas flagradas cometendo algum tipo de violência.
“Impostora: yellowface” não traz respostas, mas abre margem para as perguntas que todos deveríamos fazer sobre apropriação cultural e o verdadeiro significado de aliados. Questionar é o primeiro passo para mudarmos as coisas e espero que este livro seja o estopim de discussões a respeito da diversidade e da representatividade, não só no mercado editorial, mas em todas as esferas.