Revisão: Allana Aristides
Design por: Mafê
Campina Grande, 28 de Abril de 2025.
Gênero: Ficção contemporânea, Ficção urbana
Classificação indicativa: 16 anos
Talvez, quem folheie “If I Had Your Face” em alguma livraria pense tratar-se de mais um romance sobre a busca da beleza. Mas a obra de Frances Cha vai além: ela expõe um sistema que transforma o rosto em mercadoria e a cirurgia plástica em uma passagem, quase obrigatória, para a inclusão social.
Ara, a narradora sensível e observadora, nos leva por um cotidiano onde o cuidado com a aparência se mistura à luta por pertencimento. Kyuri, cuja beleza vem de várias cirurgias e tratamentos, ilustra como a aparência pode se tornar um instrumento de inclusão – e, ao mesmo tempo, afastar quem não “se encaixa”. Esse é o paradoxo: a mesma aparência que cria laços pode excluir quem não a compartilha. Além disso, seu trabalho exige essa preocupação constante com o visual. Pesquisadores chamam isso de trabalho estético: quando manter um certo estilo de cabelo, pele e maquiagem não é somente uma escolha pessoal, mas parte do próprio emprego.
Wonna, cuja dor e vulnerabilidade ecoam comigo de maneira especial, revela as marcas de um passado repleto de desafios. Sua história é um lembrete frequente de que o investimento no corpo não é apenas uma escolha pessoal. Mas, muitas vezes, uma estratégia imposta por contextos que mesclam antigos valores culturais com as regras do mundo moderno, na qual a estética é vendida como a chave para oportunidades melhores e para a superação de estigmas. Já Miho, com sua postura mais reservada, representa a busca silenciosa por autenticidade em meio à pressão de se conformar a um ideal que parece, a cada dia, mais distante da experiência humana.

A narrativa de Cha vai muito além da simples trajetória das personagens, revelando como esse trabalho estético atua como um imperativo social. No artigo “Prettier Faces, Better Lives?”, Agata Rupińska¹ mostra que, na Coreia do Sul, a busca pela aparência idealizada deixa de ser escolha para se tornar uma exigência: sem ela, mulheres como Kyuri ficam marcadas pelo julgamento e perdem acesso a oportunidades de emprego e prestígio social. Nesse contexto, as escolhas de Sujin, por exemplo, ilustram não apenas a busca por um ideal de beleza, mas também a necessidade de cumprir um “dever” profissional e social que pode, ironicamente, restringir a autonomia dessas mulheres.
Em um contexto onde a estética é associada a uma promessa de “melhor vida”, a pressão para alcançar um rosto ideal – que privilegia traços como olhos amplos, pele impecável e contornos delicados – é cultivada por uma indústria global que alimenta aspirações e, ao mesmo tempo, impõe um alto custo emocional e financeiro. Assim, a transformação que se vê nas personagens do romance não é apenas física, mas também uma negociação constante com normas sociais que definem quem pode – e deve – ser considerado belo.
A obra de Frances Cha, ao nos apresentar histórias marcadas pela busca incessante da perfeição, desafia o leitor a refletir sobre até que ponto a transformação estética é fruto de desejo e escolhas sinceras, ou de uma lógica imposta pelas estruturas de poder que veiculam a ideia de que “mais beleza equivale a uma vida melhor”. O romance não julga nem condena, ele revela como três forças se combinam para alimentar essa pressão.
Primeiro, as clínicas de cirurgia plástica promovem a promessa de ascensão social, vendendo cada procedimento como se fosse um passaporte para aceitação e sucesso. Em seguida, programas de TV e reality shows transformam a dor e o risco da cirurgia em espetáculo, normalizando o bisturi e ditando tendências de beleza. Por fim, as relações pessoais – amigas, colegas de trabalho, vizinhas – reforçam umas às outras a necessidade de alcançar um padrão cada vez mais rigoroso, muitas vezes sem perceber o custo emocional e financeiro envolvido.
Assim, “If I Had Your Face” se configura não só como uma obra de ficção, mas também como um espelho que mostra as contradições de uma sociedade que transforma a aparência em moeda de inclusão e de poder. E, ao final, fica a pergunta incômoda: será que, ao transformar espelhos em vitrines, não perdemos de vista o que faz de cada rosto – e cada pessoa – verdadeiramente singular?
¹Agata Rupińska é doutoranda na Academia Artium Humaniorum da Universidade Nicolau Copernicus em Toruń, Polônia.