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Hit!Review: Gabaritando em conceito, estética e significado, “Zombie” é a música mais bem construída do DAY6

São Paulo, 15 de Dezembro de 2022
Texto por: Mariana Luzan

O isolamento social por conta da pandemia de Coronavírus mudou completamente todos os âmbitos da convivência em sociedade durante os anos de 2020, 2021 e parte de 2022. Desde a forma de se trabalhar, fazer compras, consultar o médico, até a comunicação e interações sociais, que ficaram mais reduzidas durante esse período. Por conta disso, a saúde mental das pessoas também foi altamente afetada durante o lockdown, seja pela restrição ou total falta de contato com outras pessoas ou até mesmo pela queda na qualidade de vida e o medo e incerteza que a pandemia trouxe para o mundo todo.

Esse contexto todo explica bem a escolha dessa análise e evidencia o motivo da música Zombie, da banda de K-Rock DAY6 ter sido um marco tão grande na indústria musical coreana em 2020.

A música é a faixa título do sexto mini álbum da banda, “The Book of Us: The Demon”, que foi lançado em maio de 2020, ápice do isolamento social e um dos momentos mais tensos da pandemia no mundo (e coincidentemente, início do hiatus do DAY6 para tratar da saúde mental de Sungjin e do agora ex-guitarrista Jae). A letra da música casa muito com os sentimentos que muitas pessoas tiveram durante esse período, uma vez que fala sobre a sensação de estar vivendo uma vida monótona e repetitiva, sem muitas esperanças de mudanças, como evidencia o pré-refrão:

Sim, nós vivemos uma vida
Correndo em círculos todo dia e noite
Sim, nós vivemos uma vida
Embora eu tente mudar alguma coisa
Parece que não consigo fazer nada
E não tenho mais nada comigo aqui
(tradução: Sophia / letras.mus.br)

A canção já começou a ser escrita em cima da ideia de monotonia, pelas mãos habilidosas de Young K, o compositor principal da banda. Com o conceito de apatia em mente, o segundo compositor mais creditado do DAY6, Wonpil, deu a ideia de usarem “zumbi” como conceito base e assim as pontas foram fechadas e a banda trabalhou em cima dessas ideias.

A música foi muito bem aceita entre o público, desde os fãs até os artistas coreanos. Zombie bateu recordes da banda e alcançou rankings nas paradas musicais que o DAY6 jamais tinha alcançado, sem contar na quantidade de artistas renomados que cantaram a música, como IU, Eric Nam, Stray Kids, Wonho, Xdinary Heroes e muitos outros.

O contexto da sociedade na época do lançamento e a letra que passa uma mensagem não de positividade tóxica, mas que promove uma identificação do público com a letra, somados à enorme popularidade do DAY6 na Coreia são os maiores motivos para a música ter sido um sucesso. O DAY6 acertou muito na escrita, mas, para além disso, o trabalho feito na composição instrumental foi espetacular.

Para começar, a música é muito linear. Não tem quase nenhuma surpresa, nenhum solo de instrumento, nenhuma virada absurda na bateria, quase que uma música “morna”. 

E isso é motivo para Zombie ser chamada de espetacular? Absolutamente. Porque é exatamente esse o objetivo da banda ao lançar esse instrumental para a canção.

A letra fala estar sempre no mesmo lugar, fazendo a mesma coisa, simplesmente… existindo. Sem perspectiva, sem um rumo definido, nada de diferente. Basicamente em linha reta, num caminho onde você não vê o início nem o final. Quase que um limbo existencial. Faria sentido uma letra com esse conceito ter um milhão de riffs de guitarra diferentes, mudança no tom o tempo todo, um instrumental todo trabalhado em contrapontos e acordes complicados sendo que o conceito da música é… o vazio?

O desafio na composição de Zombie parece ter sido justamente conseguir expressar através dos instrumentos esse vazio que a letra propõe, mas sem deixar a música maçante ou sem graça. E eles conseguiram.

Dá pra ver como a música segue o conceito corretinho na letra, instrumental e no videoclipe. O MV de zombie é um dos melhores do DAY6 e, apesar de parecer “simples”, o pessoal sofreu um bocado para gravar e editar (mas isso já é com a galera de audiovisual. Aguardem as próximas análises). Mas, pra quem nunca assistiu, o clipe é basicamente sobre um personagem que age roboticamente, como um zumbi sem pensamentos, e vive uma rotina monótona e sem vontade própria enquanto a vida literalmente corre ao seu redor. Vez ou outra a banda dá o ar da graça e aparece tocando os intrumentos, mas o personagem principal do videoclipe é o “zumbi”.

Partindo pra parte mais técnica musicalmente, tem umas coisas muito interessantes que eu percebi, dentro da minha interpretação pessoal baseada no que eu sei de teoria musical. A faixa usa a escala de dó maior em quase toda a música, com exceção do último refrão, onde o tom sofre uma modulação e sobe pra dó sustenido. Além do tom simples com poucos acordes, não tem nenhum empréstimo modal, ou seja, nada de fora da escala musical daquele tom, nenhum acorde de surpresa, nada que se difere do comum, nada de novo (e, dentro do conceito de monotonia, isso faz absoluto sentido).

E uma das maiores sacadas instrumentais e melódicas já feitas pelo DAY6: a cadência. No estudo da música, existe uma coisa chamada cadência. As cadências são sequências de acordes que provocam determinadas sensações no ouvinte. A cadência perfeita, por exemplo, que termina na nota tônica da escala, é a cadência que causa sensação de repouso, satisfação, de que tudo está em seu devido lugar. Enquanto isso, a cadência que termina no grau dominante da escala provoca inquietação, esperança por alguma resolução. Quando uma música termina nessa cadência, o ouvinte fica esperando algo, uma consumação e resolução que não vem. E isso corrobora mais ainda a ideia de frustração que Zombie traz. O fim da música não parece o fim, não soa como fim, e frustra, causa desconforto. Assim como o sentimento que a letra passa, principalmente os versos finais da música, que dizem: 

Eu me tornei um zumbi
Eu continuo andando, vagando sem direção
Amanhã será a mesma coisa
Eu vivo contando as horas até fechar os olhos
(tradução: Sophia / letras.mus.br)

A última nota de zombie, que deveria ser a tônica para formar a cadência perfeita (dó sustenido, depois de mudar o tom), não acontece. Eles param com o instrumental na dominante, deixando um sentimento de vazio, e terminam a música só com o vocal. E por falar em voz, além dos acordes, a construção do canto foi muito bem feita. A forma como a voz deles foi empostada durante toda a música passa exatamente o sentimento da canção. Mesmo se você não souber do que se trata a letra, você sabe que é algo sombrio. Por exemplo, no começo, Young K canta sem força nenhuma na voz, quase numa monotonia, e logo em seguida chega Jae com menos força ainda, quase como um sussurro. Eles souberam controlar a performance vocal deles para se encaixar exatamente no sentimento que cada estrofe exigia.

A construção instrumental, não só nas sequências de acordes, também é muito interessante. Ela não tem momentos de explosão, como em algumas músicas do DAY6, e segue sempre uma mesma linha, para dar sentido ao ar de “sempre a mesma coisa sem previsão pra terminar” que a letra sugere. E isso não significa que a música é “pobre”, fraca, ou qualquer coisa do tipo. A escolha do instrumental foi certeira para corroborar o ar cômodo (e ao mesmo tempo desconfortável) e a sensação de vazio e falta de perspectiva que Zombie entrega com a letra e interpretação vocal.

E é por isso que Zombie é a música mais bem construída do DAY6. A banda acertou no conceito, acertou no momento de lançar a canção, acertou na letra, acertou no instrumental e acertou na interpretação. Não por acaso eles ganharam como melhor performance de banda no Mnet Asian Music Awards de 2020, mesmo sem performar a música nenhuma vez por conta do hiatus que acabou emendando o período de serviço militar dos integrantes coreanos. 

Zombie foi lançada quando, mais do que uma palavra de esperança, as pessoas precisavam de uma identificação, de ver que não estavam sozinhas tendo aqueles sentimentos ruins e que era normal se sentir assim. 

E é esse um dos poderes mais fortes e bonitos da arte. Gerar identificação e, através dela, criar também conforto e esperança em dias melhores.

Tradução completa da música (traduzida para o português por Sophia / letras.mus.br):

Que tipo de dia foi ontem?
Teve algo especial?
Estou tentando lembrar
Mas nada vem à mente


Hoje passa do mesmo jeito
Eu sou o único tendo dificuldades?
Como eu supero isso?
As coisas seriam melhores se eu colocasse tudo para fora?

Sim, nós vivemos uma vida
Correndo em círculos todo dia e noite
Sim, nós vivemos uma vida
Embora eu tente mudar alguma coisa
Parece que não consigo fazer nada
E não tenho mais nada comigo aqui

Eu sinto que me tornei um zumbi
Com a mente e o coração vazios
Um espantalho sem pensamentos
Desde quando fiquei assim? Oh, por quê?

Eu me tornei um zumbi
Eu continuo andando, vagando sem direção
Amanhã será a mesma coisa
Eu vivo contando as horas até fechar os olhos

Sim, nós vivemos uma vida
Olhos bem abertos na escuridão
Essa vida sem sentido
Embora eu queira apenas relaxar
Embora eu queira apenas sonhar
Não há nada que eu possa fazer

Eu sinto que me tornei um zumbi
Com a mente e o coração vazios
Um espantalho sem pensamentos
Desde quando fiquei assim? Oh, por quê?

Eu me tornei um zumbi
Eu continuo andando, vagando sem direção
Amanhã será a mesma coisa
Eu vivo contando as horas até fechar os olhos

Coloco tudo pra fora, quero chorar
Me desprendo de tudo, posso chorar?
Me devolva minhas lágrimas, elas secaram

Oh, oh

Eu sinto que me tornei um zumbi
Com a mente e o coração vazios
Um espantalho sem pensamentos
Desde quando fiquei assim? Oh, por quê?

Eu me tornei um zumbi
Eu continuo andando, vagando sem direção
Amanhã será a mesma coisa
Eu vivo contando as horas até fechar os olhos

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