Texto: Maria Raquel Brito
Design: Duda Curvelo
Revisão: Bia Martins
Salvador, 9 de agosto de 2025.
Cabelos trançados, roupas largas, grillz nos dentes e correntes no pescoço. É fácil se deparar com essa combinação em clipes ou fotos de artistas negros mundo afora. Mas, se fecharmos os olhos, não é preciso muito tempo para visualizarmos algum idol de K-pop que já tenha usado alguns desses elementos. A cultura negra está fortemente presente no K-pop, numa influência que vai muito além da sonoridade e levanta a seguinte questão: onde a apreciação e a apropriação se cruzam?
Nos últimos meses, duas situações protagonizaram essa discussão. Em abril deste ano, aconteceu a polêmica live do KISS OF LIFE em comemoração ao aniversário da integrante Julie, em que, sob o tema ‘hip-hop old school’, elas usaram cornrows e correntes grossas douradas, além de reproduzir gírias e trejeitos associados a pessoas negras. O que supostamente seria uma homenagem, foi posto em prática de maneira insensível e que reforça estereótipos, segundo fãs negros e latinos do grupo.
Dois meses depois, a apropriação cultural voltou a ser pautada fortemente com o debut do ALLDAY PROJECT, especificamente por conta do estilo adotado pelo integrante Tarzzan e pela reprodução de gírias e dialetos.
Esse não é um fenômeno de hoje. O K-pop como conhecemos hoje, cujo surgimento é associado ao debut do Seo Taiji and Boys em 1992, já nasce mesclando a cultura coreana com elementos do ocidente, sobretudo dos Estados Unidos, como sonoridade e estilo. Daí, é evidente a influência da música negra, com as batidas que remetem ao hip-hop e as grandes partes de rap nas canções, mas também o peso da moda negra.
É assim que, no início dos anos 1990, o Seo Taiji and Boys vem ao mundo. Nos quatro anos em que ficou ativo, o boy group composto por Seo Taiji, Yang Hyun-suk – o YG – e Lee Juno, reconhecido como o primeiro grupo de K-pop, incorporou, além das melodias e das letras rebeldes, o estilo associado à cultura negra: as tranças e dreadlocks se tornaram um acessório frequente e, em uma das apresentações mais emblemáticas do grupo, não passa despercebido o uso de blackface (prática em que a pele é escurecida para emular uma performance de negritude, geralmente de forma caricatural).
As vestimentas e os acessórios que remetem a comunidades não-brancas, como mostram os casos do Tarzzan, o do KISS OF LIFE e de muitos outros idols, aparecem repetidamente, tratado como um sinônimo de “atitude”, “rebeldia” e “originalidade”. Quem explica é Kelven Figueiredo, pesquisador em Culturas da Imagem e do Som e mestre em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela Universidade Federal da Bahia (UFBA).
“Isso se relaciona com os papéis que cada idol desempenha dentro das girl bands e boy bands. No entanto, esse uso tende a estar desconectado de seu contexto histórico e político. O resultado é que traços culturais negros são tratados como acessórios ou ‘temas’ temporários, e não como expressões de uma identidade que historicamente sofreu marginalização – ou como símbolos de resistência. Um exemplo disso são os elementos da cultura hip-hop, frequentemente emulados por diversos grupos de K-pop, mas de forma tão diluída e despolitizada que mal se reconhece seu papel histórico como espaço de denúncia contra injustiças sociais, racismo, violência e desigualdade, além de ser uma ferramenta de autoafirmação para identidades negras”, afirma.
Com sua autenticidade e seu ar de novidade no cenário sul-coreano, o Seo Taiji and Boys pavimentou o caminho para muitos outros atos de K-pop. A influência atravessou e continua a atravessar gerações, indo de grupos como 2NE1 e BIGBANG a BTS e BLACKPINK, que, por sua vez, influenciam outros artistas mais jovens. As tendências mudam, os estilos se renovam, mas a base de parte considerável dos conceitos do K-pop continua sendo a mesma: as mais diversas formas de manifestação da cultura negra.
Mas, se o histórico de apropriação do K-pop em relação à cultura negra é longo, esta não é a única que sofre com isso. De tempos em tempos, sonoridades, vestimentas e acessórios de comunidades indígenas e do sul asiático, por exemplo, aparecem em MVs ou photoshoots.
Apreciação versus apropriação
A apreciação e a apropriação cultural não são excludentes. Um idol pode admirar a cultura negra e, ainda assim, mesmo sem intenção, cruzar a linha entre os dois. E onde está essa linha?
O pesquisador Kelven Figueiredo descreve a apropriação cultural como “um processo que envolve o deslocamento e a adoção de artefatos culturais, signos e modos de sociabilidade originários de culturas historicamente marginalizadas, mas ocorre em uma relação de dominância e desigualdade de poder”. Assim, segundo ele, os elementos culturais são retirados de seu significado original, descontextualizados e muitas vezes explorados para fins estéticos ou comerciais, sem o devido reconhecimento ou respeito às comunidades que os criaram.
A apreciação cultural, por sua vez, pressupõe um engajamento respeitoso e consciente com outras culturas, marcado pelo reconhecimento de suas origens, significados e pelo diálogo intercultural. Aqui, de acordo com o pesquisador, há a valorização do contexto histórico e político dos elementos culturais, além da contribuição para o intercâmbio enriquecedor e para a construção de relações mais justas e equitativas entre diferentes grupos culturais.
Um dos problemas da apropriação cultural é quando há uma disposição para aceitar e consumir a música e a moda que vêm de comunidades não-brancas, mas não para consumir a produção de artistas negros.
Figueiredo concorda: “Isso cria um ciclo em que a cultura negra é lucrativa quando apropriada por artistas não negros, mas marginalizada quando apresentada por seus próprios criadores. Além de invisibilizar talentos, reforça a hierarquia racial na indústria cultural: certos corpos e rostos são aceitos como ‘vitrine’ dessa estética, enquanto outros são mantidos à margem ou enfrentam barreiras para alcançar espaços midiáticos similares. Então voltamos ao argumento de Garofalo”, afirma.
O argumento em questão é o que Reebee Garofalo, professor emérito de Estudos Americanos na Universidade de Massachusetts, traz no ensaio “Crossing Over: From Black Rhythm & Blues to White Rock ’n’ Roll” publicado em 2002. No estudo, Garofalo analisa o padrão histórico que denomina “raízes negras, frutos brancos”, que Figueiredo traça aqui um paralelo com a prática sul-coreana em relação a negritude: uma dinâmica em que a criatividade negra é apropriada, enquanto o sucesso muitas vezes vai para outros artistas, devido à exclusão sistêmica de artistas negros das posições de poder na indústria e à segregação artificial entre audiências.
Preconceito perpetuado
Em 2009, Timothy Lim escreveu o artigo “Who is Korean? Migration, Immigration, and the Challenge of Multiculturalism in Homogeneous Societies”, em que defende que existe uma tentativa sul-coreana de estabelecer uma identidade própria baseada na combinação de racialidade e valores; a valorização tanto do sangue coreano “puro” quanto dos valores. Uma das consequências desse pensamento é a perceptível bagagem racista e um enaltecimento extremo da pele clara. Ter a pele mais escura não é exatamente “desejável”, sendo até motivo de piadas em programas de variedades. A experiência de alguns artistas com o colorismo, como a Kwon Yuri, do Girls’ Generation, o KAI, do EXO, e a Insooni, cantora de ascendência coreana e negra, reforça isso.
Mas, ainda assim, a estética que vem de outras culturas ainda faz sucesso. Isso faz com que uma pergunta continue a pairar: como, em pleno 2025, com informações e debates sobre raça cada vez mais acessíveis, a apropriação cultural se estabelece com tanta naturalidade dentro do K-pop? No caso do KISS OF LIFE, por exemplo, dias antes da live a integrante Belle mandou uma mensagem para os fãs pedindo que não deixassem o fandom depois de acompanhar a transmissão, mostrando que, ao que tudo indica, elas sabiam que estavam prestes a ultrapassar um limite. Para Figueiredo, a resposta é o lucro.
“Embora a internet e os debates online tenham aumentado a pressão, o mercado de entretenimento coreano ainda opera com foco quase exclusivo em retorno financeiro e imagem interna. Nesse contexto, o público nacional parece não perceber/não se importar com esse tema. Além disso, há uma sensação de “distância” histórica que opera aí. É como se, por não compartilharem a mesma história racial dos EUA ou do Brasil, artistas coreanos não estivessem implicados nessas dinâmicas. Esse raciocínio parece não se dar conta que, ao exportar sua música para o mundo, o K-pop também exporta símbolos carregados de significados políticos para a comunidade global”, diz.
O pesquisador destaca que essa forma de apropriação de expressões artísticas e culturais negras está longe de ser algo exclusivo do K-pop, e que a apropriação cultural não é um fenômeno que acontece apenas por ações isoladas de indivíduos, mas sim um processo estruturado, permeado por relações de poder históricas e institucionais.
“Essas relações determinam quem tem voz, quem é reconhecido e quem se beneficia cultural e economicamente. Assim, a apropriação é sustentada por sistemas maiores que perpetuam desigualdades e dinâmicas de dominação simbólica, tornando necessário um olhar crítico sobre as estruturas que viabilizam esses processos, e não apenas sobre as atitudes individuais.”

