Santa Catarina, 19, janeiro de 2023.
Texto por: Nico Rodrigues .
Song Ji Eun foi a vocalista principal do girlgroup SECRET e atualmente trabalha como solista após o fim das atividades do grupo. Mas se tinha algo além da sua voz angelical que sempre atraía a atenção dos fãs e entusiastas da música, era sua ousadia ao trazer lá nos meados de 2012 e 2014, temas pouquíssimo abordados pela indústria musical sul-coreana.
E é exatamente sobre uma das suas críticas afiadíssimas que se trata a análise de hoje, afinal, quem ousa pensar que pode nos dizer como amar?
“Don’t Look at Me Like That” tem uma letra controversa e experimental sobre amor entre pessoas do mesmo sexo, raças diferentes, idades diferentes, e outras relações possivelmente preconceituosas e estereotipadas. — Descrição do MV no canal oficial “1theK” (youtube).
Quando a própria descrição do MV é apresentada desta forma, conseguimos ter uma dimensão maior sobre como Ji Eun estava à frente de toda a indústria com a obra-prima que é “Don’t Look At Me Like That”.
Evidenciando uma direção de arte mais sombria — e característica dos solos da artista —, referências cinematográficas e metáforas visuais, esse MV é impecável do começo ao fim e nos deixa, justamente, com o desejo de declarar aos preconceituosos exatamente as palavras da cantora: “Me diga o que é o amor, me diga o que é errado”.
E antes de partirmos para a minha parte favorita, confere essa perfeição na íntegra!
Começamos acompanhando a confissão da nossa Ji Eun dizendo que “quando as luzes se apagam, vou ao seu encontro” enquanto ela é guiada por uma figura estranha e mascarada. Na primeira vez que vi o MV, à princípio, pensei que ela era uma espécie de prisioneira, mas a forma como a personagem dela é explorada no MV vai muito além.
As correntes de Ji Eun são um mero detalhe, pois sua prisão vai muito além do material. Seu amor está aprisionado por olhares julgadores e por comportamentos maldosos, que se escondem sob as máscaras dos personagens do MV. Da mesma forma que inúmeros preconceituosos se escondem no anonimato para atacar as pessoas por serem quem são e amarem livremente.
A música traz uma melodia melancólica que casa perfeitamente com a voz da cantora, conseguindo transmitir não só o sofrimento, mas a indignação com aquele julgamento injusto à medida que a música vai crescendo e ela questionando ‘Por quê? Por que não? Nós estamos tão apaixonados.’
Mais do que apenas capturada, nossa estrela está sendo exibida como um objeto; um ‘ser’ incompreendido; uma existência que causa repulsa e curiosidade naqueles que desejam dominá-la. Esse cenário de leilão me fez recordar de referências completamente aleatórias, como o leilão de Ghouls em “Tokyo Ghoul” onde o protagonista é enganado e tratado de uma forma abusiva por outros indivíduos da elite que querem simplesmente tê-lo como escravo.
Ainda é preciso evidenciar que essa “elite” é retratada no MV através do requinte que compõem os personagens: roupas de alta qualidade, dinheiro abundante — tanto que eles jogam as cédulas no ar como se fossem nada —, champanhes e o simples deleite em ter ‘poder’ para roubar a liberdade de alguém.
E, apesar de não ser uma referência usada no MV, pois ele é de 2014, e o filme “Corra!”, que é de 2017, ainda acredito que vale a pena ressaltar uma similaridade trazida no MV que também se aborda no filme: a desumanização das pessoas.
Capturados para serem vendidos como se não tivessem o livre-arbítrio como direito, tanto Ji Eun quanto o protagonista do filme têm suas liberdades postas em risco de forma brusca, suas figuras ridicularizadas e suas existências resumidas à submissão.
E tudo, é claro, ocorre longe dos olhos da sociedade. Afinal, os preconceituosos sabem que não podem agir deliberadamente. Eles escondem-se, agrupam-se e cercam seus alvos. E toda a construção desse esconderijo é percebida através dos cenários do MV, que se desdobra em ambientes como depósitos, porões e salões vazios — onde coisas são escondidas; largadas; onde não resta mais nada de valor.
Mas também como é levantado no filme, no anime e em diversas obras onde encaramos uma situação de opressão: o oprimido pode reagir. E é na reação de Ji Eun que mora a maior referência do MV, mas antes de chegar nela, vamos reparar em uma coisa?
Quando nossa estrela canta sobre desejar viver em um mundo onde o tempo (dela com a pessoa amada) parasse para, provavelmente, não ter que encarar a realidade cruel, a encontramos com um novo figurino. Mais limpo, mais simples e em uma cena em preto e branco.
Como poderia ser diferente? Afinal, estão tentando tirar suas cores, sua essência. Mas é justamente para essa mesma figura, nesse mesmo cenário e com o mesmo figurino que acompanhamos a — literal — explosão da sua resistência.
As cores retornam, seus movimentos são bruscos e observamos o vestido vermelho que dá um spoiler sobre o final da história. Lembram de Carrie, a Estranha?
Uma menina maltratada e submetida ao julgamento da sociedade, e da própria mãe, cujos traumas liberam poderes psíquicos e ela elimina cada um que a machucou nessa explosão dolorosa da sua própria natureza. Seu grito de liberdade é tão violento quanto a causa dele.
Bem como o desfecho dos malfeitores do MV, que são subjugados pela nossa protagonista.
Ji Eun usa dessas referências e, ainda, de metáforas onde canta sobre brotar uma flor no meio dos espinhos referente ao amor que ela tinha e foi corrompido pelos demais.
Mas muito mais do que qualquer outro elemento, é o olhar da protagonista e a sua música que definitivamente falam conosco.
Do começo ao fim Ji Eun tem cortes de cena em que seus olhos são fixos à câmera, nos transmitindo a dor, a confusão e a revolta. Sua canção pede às pessoas que reflitam, revejam e questionem o quê há de errado em amar? Seja uma pessoa do mesmo sexo, uma pessoa de raça diferente ou outro tipo de relação que sofre com as más línguas, o mundo precisa deixar de corromper o amor com sua maldade.
E, por fim, considerando os inúmeros casos de homofobia, xenofobia e violência que existem na Coreia do Sul contra casais LGBQIAT+, interraciais e outros, além das polêmicas exclusivamente relativas ao ato de um idol somente amar alguém, a mensagem final que ela deixou cantada há anos é bem incisiva:
“Não olhe para mim desta forma. Nós estamos apaixonados, isso é o suficiente. […]
Apenas nos deixe em paz!”
