Ana Beatriz Medella (@Heyanabea._)
Rio de Janeiro, 19 de fevereiro de 2023
Para os fãs é difícil se distanciar de todo o glamour e, principalmente, do vínculo que criamos com alguns idols. Porém, quando olhamos com mais atenção por trás de toda imagem de perfeição, podemos ver que essa pessoa está longe de ser perfeita. Durante a semana passada, a cantora Huh Yunjin, membro do Le Sserafim, lançou sua primeira música solo abordando que ser um idol não é sinônimo de ser uma boneca vazia e manipulável. A música traz uma reflexão de que idols também são pessoas que merecem respeito e que precisam ter suas individualidades reconhecidas. Mais detalhes sobre a música podem ser conferidos na nossa Hit!Letter sobre a música.
A música pode ser entendida como um desabafo e um relato do que é ser um idol. Além de pessoas que observam e criticam cada passo dado e de reportagens sensacionalistas, há ainda um outro componente que drena aqueles que decidem por seguir essa carreira. O idol é o produto principal do Kpop, ele é o rosto nos mv’s, a voz da música e corpo que realiza cada movimento. Sua imagem é excessivamente massificada Coreia afora para fazer com que o Kpop continue a girar mundialmente.
- ANTES MESMO DE NASCER
Para alguns, esse caminho começa antes mesmo das primeiras palavras. Com as agências aceitando trainees cada vez mais cedo, o investimento na carreira de idol começa antes que o jovem seja aceito pela empresa. A idealização de se tornar idol pode ser um sonho compartilhado com os pais, que almejam uma carreira estável e abundante para o filho. Um ponto interessante é que o sentimento de um futuro brilhante é algo que os pais não guardam para si, mas se estendem a toda nação sul coreana. Um idol que alcança sucesso, não traz orgulho apenas aos pais e sim a toda Coreia do Sul. Assim, o peso de “honrar a alguém” é maior do que do ser bem sucedido no sentido ocidental.
As crianças são treinadas a terem as atitudes e comportamentos desejáveis de um idol, aprendendo atributos que sejam altamente valorizados pelas empresas. Essa visão que os pais têm sobre o Kpop começa depois dos anos 2000, quando empresas buscam na mídia nacional uma maneira de mudar a forma como se enxergava a carreira de astros de Kpop. Valendo-se do sentimento nacionalista, o envolvimento de agências governamentais não tardou para fazer do Kpop um fenômeno mundial em 2011.
Outra diferença com o Ocidente é que nosso entendimento de “sucesso” na carreira artística está atrelado ao ganho financeiro, enquanto na Coreia do Sul isso não é uma demanda tão objetivada. O sistema adotado pelas agências de entretenimento sul-coreanas privilegia mais os interesses da companhia do que dos cantores com os quais mantém contrato. Ou seja, mesmo que o sucesso tenha sido alcançado por um grupo ou idol solo, os riscos ainda são muito elevados. A ampla projeção de fama não garante que eles tenham mais segurança e independência da agência.
Mais um dos motivos que leva os pais a apoiarem a carreira dentro do Kpop, é a falta de expectativas de que os filhos atinjam bom desempenho acadêmico e que consigam trabalhos seguros dentro de um molde mais tradicional. Apostar na carreira dos filhos seria uma outra forma de fazer com que eles deem certo dentro do pop coreano. Junto a isso, observa-se uma grande preocupação que os pais têm em serem reconhecidos por terem criado filhos que são bons cidadãos e que honram o país. É perceptível que a imagem perante a sociedade é imensamente valorizada.
- VIDA DE TRAINEE
Depois de fecharem contrato com uma empresa, seja grande ou pequena, o trainee ainda tem uma longa caminhada até chegar ao debut. O tempo é variado, há idols que ficam meses ou até anos aguardando a estreia.
Os contratos são a forma de tornar legal a relação estabelecida entre o jovem e a empresa, tendo termos que estabelecem o papel que cada um deve cumprir. Em contratos com grandes empresas, como SM e JYP, os custos são por conta das agências. Já em empresas pequenas, é legal que os trainees arquem com os custos que possuem na empresa.
No começo de 2021, GRAZY GRACE, rapper e ex-trainee, fez um exposed acerca de como é ser trainee e dos abusos cometidos pelas empresas. Foi citado, por exemplo, a invasão de privacidade, o que significa até mesmo checar os celulares e trocas de mensagens. Grazy Grace falou também que mesmo estando sob cuidados da empresa, ela não recebeu tratamento para insônia e depressão.
Fonte: Hello Entertaiment
(https://data.kpopstarz.com/data/images/full/526100/grace_02-jpeg.jpg)
Dentro de suas obrigações com a empresa, ela deveria dar o seu melhor nas categorias que a companhia oferece treinamento. Porém, a falta de clareza sobre quais seriam os estandartes de satisfação faz com que as empresas possam terminar o contrato facilmente antes mesmo do tempo estabelecido. A rapper assinou o contrato antes que o governo sul-coreano tivesse padronizado o modelo tanto para trainee quanto para cantores. Até o momento dessa padronização, os contratos eram particulares de cada empresa.
No modelo atual, o tempo máximo permitido é de três anos e o trainee é livre para renovar ou não. Outra mudança é que as empresas não podem invadir a privacidade dos trainees, a menos que se refira a algo do treinamento. Entretanto, a ambiguidade do que valida a invasão ainda deixa os jovens vulneráveis às vontades da empresa.
- DEPOIS DO DEBUT
Após o debut as demandas profissionais começam, bem como as cobranças dos fandoms. No caso de grupos femininos, ainda é necessário lidar com o machismo que perpassa o mundo das idols. Assédios não se restringem a grandes empresários ou de quem trabalha no “backstage” da indústria, podendo ser cometido também por idols masculinos. Ou seja, além do assédio moral, grupos e idols femininas solos estão sujeitas ao assédio sexual mais do que os masculinos.
De acordo com o artigo do Professor Dr. Gooyong Kim da Universidade de Cheyney, nos Estados Unidos, o Kpop se localiza dentro de um sistema neoliberal sul-coreano e o trabalho empreendido pelo idols dá continuidade a esse sistema e sua racionalidade. Em sua visão, e ao analisar especificamente esse fenômeno através de grupos femininos, ele chega à conclusão de que todo o Kpop se orienta para alimentar uma racionalidade neoliberal sul-coreana. Sendo necessário levantar aqui que a matéria-prima no pop coreano é essencialmente os idols tendo o corpo como ferramenta de trabalho. Eles dão vida às músicas, passos de danças e tudo o que está relacionado a esse mundo.
Mesmo que grupos e solos femininos e masculinos deem continuidade e, de certa forma, atualizem a forma de pensamento coletivo já vigente, grupos e solos femininos se encontram mais à margem e vulneráveis do que os masculinos. Entretanto, de maneira geral, todos devem atender a padrões estéticos e de comportamento. Um dos estandartes do Kpop é ter seus idols como exemplos a serem seguidos, exigindo dos artistas algo próximo da perfeição. Logo, a reputação de um idol é muito importante para que ele se mantenha, bem como é importante para o sucesso daquele do grupo do qual faz parte.
Ter a vida como algo público e que circula em grande escala nas mídias torna aquela pessoa exposta a escândalos, falsos ou não, e também à opinião pública. Gestos que são levados como “deslizes” por parte dos artistas, podem ser infinitamente interpretados e reinterpretados pelo público. Porém, é preciso ter em mente que a leitura feita por essas pessoas não é neutra e nem totalizante, já que partem de sua visão acerca de um vídeo de poucos segundos ou uma foto. O excesso de controle vem tanto por parte da mídia quanto de quem os assiste e também das empresas.
Durante o ano de 2022, vimos de perto relatos e vídeos de abuso dos quais só ouvíamos falar. A empresa SPIRE Entertainment ficou em evidência após fãs do grupo OMEGA X denunciarem via Twitter um vídeo em que um dos integrantes era agredido. Outras denúncias foram se juntando a essa, vindas dos fãs e dos próprios membros. Por parte dos integrantes, houveram denúncias de assédio sexual, assédio moral e gaslighted (abuso psicológico onde o abusador omite, distorce ou inventa informações para deixar a vítima confusa). Atualmente, OMEGA X se encontra fora da SPIRE Entertainment e com contas individuais no Instagram.
- CORPO ENQUANTO FERRAMENTA DE TRABALHO
Como escrito antes, o corpo é a ferramenta de trabalho do idol. Meses ou anos passam até que ele seja considerado apto para um debut e, posterior a isso, o aprimoramento continua. Busca-se melhorar o canto, a dança, a aparência e tudo o que está ligado à pessoa. O grande sucesso do Kpop acontece, para além de todos os outros fatores, devido a existência dos idols que tornam o próprio corpo como instrumento de trabalho. Ao artista, cabe se polir para caber dentro de um molde a ser seguido.
Tal polimento está ligado a um excessivo controle com base do tempo. Com horários rígidos e bem divididos, o idol se divide entre treinos e apresentações, incluindo também a presença em eventos de marcas. Toda uma agenda lotada, na qual ainda é necessário se preocupar com aparência física e como deve se portar. Dessa forma, a automatização do corpo, e o adestramento de si mesmo, aprimora-se à medida em que se está mais e mais presente no meio. Todavia, isso não anula as particularidades e individualidades do artista.
Não há como desconsiderar que os idols tem ciência da posição que ocupam e nem mesmo poderíamos desconsiderar as músicas já produzidas e que abordam tal pauta.
Mais recentemente, foi lançada a música ”NXDE” do girl group G-IDLE, que trata em específico como o corpo feminino das idols são vulgarizados pelo olhar de outras pessoas. Por fim, o corpo de um idol é moldado e manipulado por todos os lados, indicando a pressão que vive quando, mesmo na infância, a pessoa segue a carreira no mundo do Kpop. Estar dentro desse lugar pode indicar a perda de uma identidade própria ao olhar do outro e um esvaziamento de si para que esse “outro” coloque suas expectativas. Expectativas que podem vir de fãs, indústria ou mídia.
É Importante frisar que idols são pessoas com vontade próprias e personalidades, porém isso fica apagado em meio ao auto polimento exigido. Também é importante dizer que apesar de os contratos entre idol e empresas terem sido padronizados pela Coreia do Sul, ainda há um longo caminho em busca por direitos e melhores condições de trabalho a ser percorrido. Há, sim, mudanças em curso. Já estamos observando processos entre gravadoras e grupos de Kpop terem um fim onde o grupo sai com sua causa ganha.
Fonte: POPLINE, koreaboo, Soompi
OMEGA X Announces Strong Legal Action After Detailing Abuse Allegations Against Their Agency And Former CEO
OMEGA X’s Agency Responds To Allegations Of CEO Being Violent Towards Members
Bibliografia:
Swee-Li. Ho. Fuel for South Korea’s “Global Dreams Factory”: The Desires of Parents Whose Children Dream of Becoming K-pop Stars. Disponível em:https://profile.nus.edu.sg/fass/sochsl/HO%20Kpop%20Dreams%20Factory%20KO2012.pdf. Acesso em: 23 Janeiro 2023
HERNÁNDEZ. Thali Q. El cuerpo idol del k-pop: disciplina, sacrificio y éxito. Puantástica #2. Argentina. N 2. p. 12-25. Dezembro 2022. Disponível em: http://revistas.filo.uba.ar/index.php/puantastica/article/viewFile/4002/2695. Acesso em: 23 Janeiro 2023 GOOYONG. Kim. K-pop Female Idols as Cultural Genre of Patriarchal Neoliberalism: A Gendered Nature of Developmentalism and the Structure of Feeling/Experience in Contemporary Korea. Telos. N. 184. V. 2018. p.185-207. 2018. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/327854255_K-pop_Female_Idols_as_Cultural_Genre_of_Patriarchal_Neoliberalism_A_Gendered_Nature_of_Developmentalism_and_the_Structure_of_FeelingExperience_in_Contemporary_Korea. Acesso em: 23 Janeiro 2023.