“-E do que você vai abrir mão, Oppa?
-Como é?
-Você disse para eu não pensar só nas coisas de que vou ter que abrir mão. Eu estaria arriscando minha juventude, minha saúde, meus colegas, minha vida social, meus planos de carreira e meu futuro. […] Mas e você? O que você vai perder ao ganhar um filho?”
O livro da autora Cho Nam-Joo, “Kim Jiyoung, nascida em 1982”, retrata a vida da personagem Jiyong e sua trajetória enquanto mulher na Coreia, de 1982 até 2016, a partir de uma narrativa fluida, em formato de relato. A obra, ao contar a história de Jiyong,da perspectiva de seu psiquiatra — que começa a atendê-la devido à queixas da sua família sobre seu comportamento estranho — é algo que nos leva a reflexão, assim como, identificação pela similaridade da condição da mulher mesmo em uma sociedade tão distante da nossa.
“Nascida em 1982” era um livro que eu sempre tive a curiosidade de ler, pela sua repercussão na Coreia e por se tornar uma obra, que segundo alguns, impulsionou o movimento feminista sul-coreano. Sua escritora, Cho Nam-Joo, é formada em sociologia pela Ewha Womans University e foi roteirista de televisão por muito tempo. Ela já escreveu cerca de 10 livros, mas seu de maior destaque é esse que trago hoje aqui, que foi, inclusive, baseado nas próprias vivências da autora.
O livro conta a história de Jiyong, uma mulher oriunda de uma família nuclear comum,não era rica nem pobre, e contava com seu pai, mãe e dois irmãos. Uma irmã mais velha e um irmão mais novo. Desde sua infância Jiyong percebe, mesmo que apenas durantes suas reminiscências com seu psiquiatra, como sua vida foi atravessada por questões de gênero.
Ela percebeu a diferença entre a criação e privilégios dela e de seu irmão, também as via nas proibições a respeito de comportamento e vestimentas, dados pelo colégio durante sua infância e adolescência, e pela sociedade chegando a vida adulta; sofrendo com assédio nas reuniões de trabalho e conflitos com a família de seu marido sobre maternidade.
O livro é dividido em seis capítulos, “Outono de 2015”; “Infância 1982-1994”; “Adolescência, 1995-2000”; “Início da vida adulta, 2001-2011”; “Casamento, 2012-2015” e “2016”. O interessante é que a pessoa que toma a iniciativa de procurar o médico é o marido de Jiyong, Daehyun, ou seja, todo o relato inicial sobre as queixas e os pontos de preocupação e do que poderia estar afligindo sua esposa, são do marido e não de Jiyong. Esse é um ponto-chave na narrativa, que será importante para nossa reflexão no final do livro.
Ao longo da obra nos são apresentadas todas as fases de vida da protagonista até o ponto atual, no qual ela procura o psiquiatra. Dessa forma, temos a descrição de todos os momentos que a desigualdade de gênero deu as caras na vida de Jiyoung. Esse relato irá durar por três capítulos, iniciando na sua infância, dentro da própria família, com a criação diferenciada do seu irmão mais novo por ser o único homem da família, e as renúncias de sua mãe, que fez de tudo para conseguir criar seus três filhos, cuidar da casa e da sogra.
Chegando ao ambiente escolar, na qual Jiyoung presenciou diversas injustiças como o tempo para as meninas se alimentarem, as regras de vestimentas incoerentes com o clima, casos de micro-violências de colegas de sala até assédio de desconhecidos e as estratégias que ela utilizou para superar e sobreviver a esses eventos. Como a união e rede de apoio de amigas e outras mulheres.
Nos últimos três capítulos acompanhamos a nossa protagonista nos perrengues da vida adulta e os diversos desafios que a mulher enfrenta nessa fase. Apesar de já ter tido experiências desagradáveis anteriormente pelo simples fato de ter nascido mulher, Jiyoung, enfrentará outras questões que estão também ligadas a esse fato. A diferença salarial e de oportunidade, o tratamento distinto entre homens e mulheres no ambiente de trabalho e até mesmo assédio nesse ambiente, são alguns dos pontos relatados pela personagem principal.
Mais adiante, os relacionamentos amorosos aparecem como um ponto importante para a trama, quando ela se casa e sofre pressão para ter filhos, pela família do marido e do próprio companheiro. Porém, as dificuldades não param por aí e Jiyoung tem que lidar com outros dilemas ao engravidar, que concernem a expectativa do papel da mulher nunca ser algo positivo, pois os julgamentos continuam independente de qual opção ela escolher acerca da família, trabalho e relacionamentos interpessoais.
Outro ponto de destaque do livro é o fato da autora trazer dados oficiais e estatística para demonstrar como as desigualdades de gênero estão presentes na sociedade sul-coreana, além de também pontuar os costumes e, inclusive, leis que regiam a sociedade coreana e afetavam diretamente as mulheres, como, por exemplo, o hoju, o sistema de registro patriarcal das famílias, o qual os filhos carregavam sempre o sobrenome paterno. Com o tempo essa regra mudou, mas mesmo assim, pelas suas raízes sociais profundas de estigmatização das mães solos, a criança que não levasse o nome da linhagem paterna poderia sofrer com isso.
Ao acompanharmos o livro e toda sua narrativa, nos questionamos e nos identificamos com vários pontos que Jiyoung relata. Vemos que ser mulher está permeado, seja em qual for a sociedade, de pressões, expectativas e lutas pela independência de nossos corpos e escolhas. O desfecho final da obra dado por Cho Nam-Joo é genial e irônico ao colocar com sutileza como o diagnóstico de loucura ou dupla personalidade atribuída à protagonista nada mais é do que a leitura de uma perspectiva masculina sobre a personagem.