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HIT!Leituras: O luto e o amor compartilham uma refeição em “Aos Prantos no Mercado”

Revisão: Adê Moura
Design: Mafê

Sincero e profundo 

São Paulo, 28 de dezembro de 2025.

Aos Prantos no Mercado”, de Michelle Zauner, publicado no Brasil pela editora Fósforo, acompanha o processo de luto da autora desde o diagnóstico terminal da mãe até o período posterior à sua morte, quando a dor passa a coexistir com a rotina. 

A narrativa se constrói entre passado e presente, articulando memórias da infância, da vida adulta e das relações familiares para compreender como a perda redefine afetos, identidade e pertencimento.

Ao revisitar sua trajetória, Michelle expõe uma relação complexa com a mãe, marcada por amor, conflitos e tentativas de aproximação. O livro também abre espaço para o pai, o companheiro que se torna marido e a família ampliada, atravessada por outros falecimentos, como a da avó e da tia. Esses episódios reforçam o peso emocional de conviver com doenças prolongadas e com a consciência constante da finitude.

A identidade coreano-americana da autora também é um dos eixos centrais da obra. Filha de mãe coreana e pai norte-americano, Michelle cresce entre dois países e duas culturas sem se sentir plenamente integrada a nenhuma delas. Esse deslocamento cultural e emocional atravessa o livro, reflete a experiência de quem vive entre línguas, costumes e expectativas que nunca se encaixam por completo.

Nesse cenário, a comida surge como principal forma de comunicação entre mãe e filha. Os pratos coreanos funcionam como elo afetivo e herança cultural, ao carregar memórias e sentimentos que muitas vezes não encontram tradução verbal. 

A escolha editorial de manter os nomes dos pratos em coreano, escritos em itálico, sem tradução ou notas de rodapé, é especialmente significativa. O leitor é colocado na mesma posição de Michelle: alguém que reconhece aqueles termos como parte de sua vida, mas que nem sempre compreende completamente o que eles significam. Pratos como jajangmyeon, tteokbokki, kimchi ou o molho de gochujang surgem carregados de emoção, não de explicação. A experiência não é didática, é sensorial, pois os alimentos no livro se tornam protagonistas do sentir, por fazerem partes de momentos que não precisam de explicação.

O livro também dialoga diretamente com a trajetória artística de Michelle Zauner, vocalista da banda Japanese Breakfast, e a escrita se conecta de forma orgânica à música. No final da obra, fica evidente como o projeto musical ganha força justamente quando ela passa a escrever e cantar sobre o luto, a ausência e o pertencimento. A dor se transforma em criação, e a criação se torna um espaço possível de sobrevivência.

No geral, a escrita de Michelle é contida, precisa e evita idealizações sobre o luto. O texto aborda o cansaço de cuidar, a impotência diante da doença e a dificuldade de seguir em frente, sem recorrer a discursos confortáveis. 

A tradução brasileira, feita por Ana Ban, preserva essas escolhas narrativas e respeita o ritmo da obra, o que contribui para uma leitura sensível e coerente com a proposta original. O trabalho da editora Fósforo merece destaque pelo cuidado editorial e gráfico, a edição brasileira, com capa assinada por Ing Lee, possui um acabamento impecável.  

Ler “Aos Prantos no Mercado” é aceitar caminhar por uma narrativa triste, profunda e extremamente humana. É um livro que fala sobre mães e filhas, sobre heranças que não cabem em palavras, sobre identidade birracial, sobre amor e sobre a impossibilidade de preparar alguém para a perda. O luto, como a própria vida, não é linear, ele aparece quando menos se espera, se intensifica sem aviso e, gradualmente, aprende a coexistir com o cotidiano.

Título: Aos Prantos no Mercado
Autora: Michelle Zauner
Classificação: 14+
Editora: Fósforo 
Páginas: 228
Acompanhe a editora no instagram @fosforoeditora

Sobre o autor

Jornalista, colunista e assessora de imprensa HIT!
Sou STAY e você pode ver mais conteúdos meus no @akoninews.

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